Diana Miranda: “Existe uma relação estreita entre o estado nutricional e a presença de disfagia”

10/17/2023
Diana Miranda, nutricionista coordenadora do Serviço da nutrição do CNS - Campus Neurológico, revelou qual a relação existente entre a alimentação e a disfagia. Explicou, ainda, a necessidade de uma abordagem multidisciplinar nos doentes com disfagia e a importância de uma alimentação adequada. Além disso, desmistificou alguns mitos associados a este tema e destacou as principais estratégias desenvolvidas pelo CNS.

HealthNews (HN)- Poderia dar uma visão geral da importância de uma alimentação adequada para doentes com disfagia e como é que a consulta de alimentação é destacada no CNS – Campus Neurológico?

Diana Miranda (DM)- A disfagia consiste na dificuldade a mastigar e/ou a engolir os alimentos e/ou os líquidos. Sabemos que a disfagia é frequente em doenças neurológicas como a doença de Parkinson e outros parkinsonismos, e a doença de Alzheimer e outros síndromes demenciais. A disfagia não diagnosticada e não gerida tem diversas consequências para doente, como infeções respiratórias, perda de peso não intencional e desidratação. Pela relação estreita e bem estudada entre o estado nutricional e a presença de disfagia, entendemos que existe a necessidade de uma abordagem multidisciplinar na qual o terapeuta da fala e o nutricionista são peças fundamentais para minimizar o impacto destas dificuldades no estado de saúde. A Consulta de Alimentação no CNS tem como objetivo a avaliação da disfagia e definição de estratégias para diminuir o impacto da mesma na saúde do doente, ao mesmo tempo que é realizada uma avaliação do estado nutricional e elaborado um plano alimentar personalizado a cada doente e às suas dificuldades para tratar e/ou prevenir desequilíbrios nutricionais.

HN- Quais são os desafios nutricionais mais comuns enfrentados por doentes com disfagia e como é que o CNS lida com eles?

DM- Uma das situações que observamos mais frequentemente está relacionada com a dificuldade em mastigar alimentos sólidos mais rijos e secos como a carne, o pão, bolachas, etc, levando a que os doentes os eliminem da sua alimentação habitual ou que demorem mais tempo a realizar a refeição ou que não a terminem. Uma consequência importante será a diminuição da ingestão alimentar no dia a dia e uma alimentação globalmente desequilibrada que pode levar a perda de peso não intencional e desnutrição. Relativamente à hidratação, a ocorrência de engasgamentos quando bebem água ou qualquer outro líquido pode desencadear uma diminuição significativa da ingestão hídrica e levar a desidratação. É comum que o próprio doente não se aperceba disto ou que não o valorize, pois são dificuldades que se vão instalando progressivamente. É importante compreender que cada doente é um doente e deve ser avaliado individualmente. O papel dos familiares e cuidadores na identificação precoce destas situações é fundamental, pois permite uma intervenção atempada que idealmente previna a deterioração do estado nutricional e de saúde. O desafio para o nutricionista será conseguir um equilíbrio entre um aporte nutricional adequado, a necessidade de adaptar a consistência e textura dos alimentos, e o respeito pelas preferências do doente, contribuindo para a manutenção do prazer alimentar. Paralelamente, quando falamos de doenças neurodegenerativas, sabemos que lidamos com uma população, na sua grande maioria, idosa e isso representa um desafio adicional.

HN- Quais são as estratégias nutricionais recomendadas para melhorar a qualidade de vida dos doentes com dificuldade de deglutição e melhorar a segurança e satisfação durante as refeições?

DM- Diria que o primeiro passo será realizar uma avaliação formal com um profissional especializado, assim que identificados os principais sinais de alerta. Após o diagnóstico da disfagia é importante estabelecer que estratégias aquele doente precisa de implementar para que o momento das refeições e de hidratação seja seguro. Ao nutricionista compete, na posse destas informações, avaliar o estado nutricional, determinar as necessidades nutricionais individuais e elaborar o plano alimentar que será orientador da composição de cada refeição do dia. Posto isto, diria que para garantir o sucesso de qualquer intervenção nutricional, a personalização de todas as nossas recomendações àquilo que são os hábitos, gostos e preferências alimentares e de hidratação de cada doente é fundamental. Por exemplo, sabemos que o abacate é um fruto nutricionalmente rico e útil para situações de perda de peso, mas se o doente não gostar de abacate ou não tiver acesso financeiro ou local onde o adquirir certamente não o irá consumir. Desde o início devem também ser desmistificadas algumas crenças, sendo uma delas a ideia de que quem tem disfagia tem de passar a “comer papas” – nem todos os doentes com disfagia necessitam de adaptar a textura e consistência dos alimentos e mesmo quando existe essa necessidade não significa que os purés e papas seja a melhor opção para salvaguardar a segurança das refeições.

HN- Quais as inovações ou abordagens especializadas que estão a ser adotadas no CNS para ajudar doentes com disfagia a manter uma dieta adequada?

DM- Em internamento, a primeira refeição realizada no CNS é sempre feita com o acompanhamento de um terapeuta da fala e de um nutricionista para detetar possíveis alterações que careçam de intervenção especializada de uma (ou ambas) as áreas. A abordagem à disfagia não é exclusiva do terapeuta da fala e do nutricionista, é multidisciplinar e todos os profissionais envolvidos, como enfermeiros, terapeutas ocupacionais, médicos, auxiliares de ação médica e colaboradores da restauração (cozinheiros, ajudantes de cozinha e ajudantes de refeitório), têm um papel fundamental. No CNS tentamos fornecer o máximo de variedade de opções alimentares para cada refeição, tendo em conta as particularidades de cada doente e as suas necessidades. A nossa abordagem não se extingue com a alta do internamento, sendo que a todos os doentes é recomendado manter acompanhamento regular para reavaliação nutricional e ajuste de estratégias mediante a necessidade.

HN- Qual é a importância de consciencializar sobre a disfagia e promover uma alimentação saudável em pessoas com doenças neurológicas? Como é que o CNS promove essa consciencialização?

DM- Os sinais de disfagia podem apresentar-se de várias formas e ter diferentes impactos, pelo que consciencializar todos os potenciais envolvidos na alimentação destes doentes deve ser uma prioridade para qualquer instituição que os acolha. Neste sentido, uma das missões do CNS é a formação de profissionais de saúde em várias temáticas relacionadas com as doenças neurológicas em que são abordados também conceitos relacionados com alimentação e disfagia. Educar e envolver os familiares e cuidadores formais ou informais é igualmente importante, existindo também vários momentos de formação para cuidadores. O principal evento formativo exclusivamente dedicado à alimentação e disfagia é o “Curso de Alimentação para Cuidadores de pessoas com doenças neurológicas” que tem sido realizado anualmente. Neste curso abordamos, em equipa multidisciplinar, os pontos-chave sobre a alimentação nestas doenças, as principais dificuldades e sinais de alerta. A componente prática desafia os participantes a “colocar as mãos na massa” e comprovarem que é possível realizar uma alimentação adequada, segura e atrativa. Este curso representa também um momento de partilha de dúvidas e experiências. O feedback tem sido muito positivo.

HN- Como é que o CNS trabalha com os doentes para desenvolver planos de alimentação personalizados?

DM- O doente é a peça central na intervenção nutricional, contribuindo primeiramente para estabelecer os objetivos da mesma (seja em termos de peso ou quantidade de líquidos a ingerir por dia, por exemplo). Estes objetivos devem ser definidos em conjunto com o nutricionista, respeitando tanto as suas preferências como as recomendações clínicas para o seu caso. É um parceiro fundamental na definição do plano alimentar delineado para atingir esses mesmos objetivos. Todos os seus gostos, preferências e hábitos alimentares e principais problemas atuais devem ser tidos em consideração, respeitando a sua individualidade. O Nutricionista atua como um intermediário entre a evidência científica e a sua tradução prática e realista naquilo que serão as opções alimentares para cada refeição do dia, sendo que no caso de existir disfagia, estas deverão ter em conta eventuais necessidades de adaptações. (Exemplo prático: o pequeno-almoço preferido do doente é um galão e um pão com manteiga, mas pela disfagia que apresenta não será uma opção segura. O nutricionista pode sugerir sopas de leite feitas com o galão e o pão humedecido no leite ou substituir o pão por uma opção mais mole como o pão de leite ou pão de forma. Assim mantem a base habitual e que gosta, e torna a refeição mais segura)

HN- Como é que o CNS – Campus Neurológico planeia expandir ou melhorar ainda mais os serviços de consultas de alimentação no futuro?

DM- No futuro gostaríamos de dar a conhecer a mais doentes e cuidadores que esta consulta existe e é realmente útil, disponibilizando mais momentos de educação e divulgação na comunidade em geral, com rastreios gratuitos e ações de sensibilização, e a outros profissionais de saúde. O médico assistente é um veículo essencial de identificação destes doentes e de referenciação. Em 2024 teremos mais uma edição do Curso de Alimentação.

HN- Como é que os doentes e as famílias podem aprender mais sobre opções alimentares adaptadas à disfagia?

DM- Numa época em que temos acesso a tanta informação é importante garantir que essa informação é credível e tecnicamente correta. A minha recomendação principal é procurar orientação individualizada com um profissional de saúde especializado e na dúvida questionar sempre, não existem dúvidas “parvas”.

HN- Na sua opinião, quais os benefícios de ser seguido numa consulta de alimentação?

DM- Do leque de casos que foram/são acompanhados nesta consulta conseguimos denotar melhorias do estado nutricional e de hidratação dos doentes, uma maior tranquilidade dos seus familiares e/ou cuidadores perante as dificuldades atuais, bem como apoio ao médico assistente em momentos de tomada de decisões como a ponderação da colocação de uma via alternativa para alimentar e hidratar.

HN- Que mensagem gostaria de deixar para o Dia Mundial da Alimentação?

DM – Gostaria de relembrar a mensagem de que a Alimentação é, ao longo do ciclo de vida, um aspeto fundamental para a saúde e prevenção de doenças não transmissíveis e que não existe um padrão totalmente certo nem totalmente errado, deve ser um padrão variado, completo e equilibrado enquadrado num estilo de vida ativo e consciente. Em várias situações de doença assume um papel de importância comprovada cientificamente e que deve ser orientado por profissionais de saúde devidamente qualificados para o efeito. Nas doenças neurológicas em particular, um adequado acompanhamento nutricional ao longo da sua evolução, contribui para uma melhor qualidade de vida do doente e dos seus cuidadores.

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