Inês Marques: “Seria ideal podermos oferecer cuidados que abrangessem o doente epilético como um todo”

02/16/2024
Em entrevista à neurologista Inês Marques, na semana em que se assinalou o Dia Internacional, o HealthNews aborda a epilepsia do diagnóstico ao tratamento. Em Portugal, "seria ideal podermos oferecer cuidados que abrangessem o doente epilético como um todo – não só as suas crises, mas também a sua qualidade de vida".

HealthNews (HN) – Qual é o tipo mais comum de epilepsia?

Inês Marques (IM) – Existem muitos tipos de epilepsia. Podemos ter crises tão diferentes quanto o nosso cérebro é diferente. De uma forma global, dividimos as epilepsias em focais, quando existe um foco epileptogénico e a atividade se inicia aí, e generalizadas, quando é um início mais disseminado, em todo o cérebro. As epilepsias focais são as mais frequentes, originando crises com manifestações consoante a zona do cérebro onde esse foco se encontra. Sabemos que as epilepsias generalizadas são mais comuns na infância e na adolescência, mas ao longo da vida o que é mais comum é termos epilepsias focais.

HN – Então, também existem casos raros.

IM – Também. Temos várias causas para a epilepsia. Algumas são mais frequentes, como as estruturais, seja por consequências de um traumatismo, por um AVC ou um tumor, ou as infeções. Outras causas, como doenças metabólicas ou genéticas, serão mais raras.

HN – A alimentação pode contribuir para melhorar a vida do doente? Que fatores comportamentais ajudam a controlar a epilepsia?

IM – De um modo geral (claro que depois pode haver algumas doenças genéticas ou metabólicas em que a alimentação tem de ser diferente), não há restrições alimentares por causa da epilepsia. Uma alimentação saudável e o exercício físico são uma forma de contribuir para o cérebro no seu todo ser mais saudável. Em termos de estilo de vida, o sono tem fortes associações ao controlo da epilepsia. Manter uma correta higiene do sono é essencial para manter a epilepsia controlada, sendo que a privação de sono, frequentemente e nalguns tipos de epilepsia mais do que noutros, é o principal desencadeante de crises.

O consumo etanólico acima de moderado ou o consumo de drogas também podem fazer descompensar a epilepsia. Em termos de desporto vai depender da fase de epilepsia em que o doente estiver. Se tiver a epilepsia muito controlada, não há perigo de praticar certos desportos. Por exemplo, praticar natação: desde que o professor esteja avisado e a epilepsia controlada, não há problema nenhum. Claro que fazer mergulho poderá ser um desporto não indicado, mas a atividade física é sempre recomendada de uma forma geral, com as devidas precauções.

HN – Existe uma rede de cuidados de âmbito nacional?

IM – Existe mais no âmbito regional. A nível nacional, os profissionais de saúde que prestam cuidados a pessoas com epilepsia acabam por estar ligados através da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia e das suas iniciativas. Há uma reunião anual para médicos e, agora, também para enfermeiros e técnicos dedicados à epilepsia, e temos também reuniões relativas à epilepsia refratária para discussão de casos. Acaba por ser uma comunidade que se conhece e que colabora entre si. A nível mais regional, nos hospitais, depende se têm ou não neurologia. Nas epilepsias refratárias, os doentes podem ser direcionados para os centros que existem em Lisboa, Coimbra e Porto.

HN – Quais são os principais centros de referência?

IM – Em Lisboa, temos dois: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte e Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. Em Coimbra, temos o CHUC (Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra) e, no Porto, temos o Centro Hospitalar Universitário de São João e o Centro Hospitalar Universitário de Santo António.

HN – Trata-se de uma doença com problemas a nível de diagnóstico?

IM – Pode ter, sim. Isto porque a semiologia das crises pode, se não for a mais clássica, que as pessoas conhecem melhor– as ditas convulsões –, passar despercebida ou pode ser interpretada como tendo outra etiologia. De facto, às vezes o diagnóstico pode ser atrasado, até durante vários anos. Muitas vezes os doentes até desvalorizam certo tipo de sintomas que não sabem poderem ser crises epiléticas, e alguns profissionais de saúde também. A partir do momento em que são referenciados para centros com neurologia, haverá habitualmente menor dificuldade diagnóstica. No geral, diria que a globalidade dos profissionais de saúde tem vindo a ficar mais alerta para o diagnóstico da epilepsia.

HN – O atraso no diagnóstico pode fazer avançar a epilepsia?

IM – Começar a medicação mais cedo ou mais tarde não vai alterar o prognóstico da doença, mas enquanto o doente não estiver controlado corre os riscos associados a uma crise com alteração do estado de consciência ou com queda. Além disso, sabemos que as crises podem trazer consequências cognitivas, algumas comorbilidades psiquiátricas, e isso sim, pode continuar a agravar-se se a epilepsia não for controlada.

HN – Que recomendações lhe parecem mais importantes?

IM – Sabemos que ainda existem, infelizmente, mitos e estigmas ligados à epilepsia, pelo que tentamos sempre passar a mensagem de que o nosso objetivo é que os doentes tenham uma vida normal, tendo a epilepsia controlada. São raros os casos em que a epilepsia se pode curar, mas, assim como em tantas outras doenças, as pessoas podem ter uma vida completamente normal tendo epilepsia, fazendo a sua medicação, que tentaremos que tenha os mínimos efeitos secundários, ou mesmo nenhuns efeitos secundários, se possível, e tendo alguns cuidados com o estilo de vida, nomeadamente com a higiene do sono e com o consumo de álcool ou drogas. Portanto, tendo um estilo de vida saudável, o nosso objetivo é que as pessoas tenham uma vida normal.

HN – Sempre com acompanhamento médico?

IM – Depende da evolução. Algumas epilepsias ficam estáveis durante décadas. São epilepsias cuja causa está lá, sabemos que a pessoa vai sempre ter de fazer medicação, mas está bem com a sua medicação, sem efeitos secundários, há muitos anos sem crises, e são doentes que são acompanhados no médico de família. Claro que enquanto os doentes não estiverem bem vão ser sempre acompanhados pelo especialista.

Existem algumas fases particulares da vida, como por exemplo na mulher jovem, na mulher que engravida, em que também é muito importante ter acompanhamento especializado.

HN- O estigma continua muito presente na vida dos doentes?

IM – Eu penso que, felizmente, tem vindo a melhorar. No mundo ocidental já é bastante diferente, e acho que os doentes têm alguma noção dos seus direitos. Mas, infelizmente, existem ainda muitos sítios do Globo onde não é assim. Por exemplo, em África, ainda existem muitas comunidades onde a epilepsia é vista quase como uma maldição, onde as pessoas são ostracizadas, não têm acesso a cuidados. Ainda existe muita desinformação nalgumas zonas. Felizmente, penso que nos países ocidentais estamos num bom caminho.

HN- Têm-se registado avanços relevantes no tratamento da epilepsia?

IM – Temos tido um aumento quase exponencial do número de fármacos anticrise epilética disponíveis, que não têm sido mais eficazes que os antigos, têm é muito menos efeitos secundários, são muito mais bem tolerados pelos doentes e têm menos interações com outros fármacos. Para além da farmacologia, houve também muitos avanços em termos da cirurgia de epilepsia, com opções de cirurgias micro invasivas, de cirurgia com estimulação cerebral profunda, cirurgia funcional, e também em termos de diagnóstico.

HN – Que melhorias julga imperativo implementar na rede de cuidados a doentes com epilepsia?

IM – Todos gostávamos de poder oferecer ainda mais; por exemplo, de conseguir ter enfermeiros disponíveis para fazer o acompanhamento ambulatório dos doentes, para qualquer dúvida que pudesse surgir, intercorrência terapêutica, etc. Ter também maior disponibilidade de consultas de psicologia, criar grupos terapêuticos e grupos de apoio. Que isso pudesse ser uma realidade a nível do sistema nacional de saúde. Em muitas das áreas precisamos de mais recursos humanos e que alguns processos sejam agilizados, nomeadamente na referenciação para os centros de referência, porque faltam meios para que se possa dar resposta atempada a tudo. Sobretudo, seria ideal podermos oferecer cuidados que abrangessem o doente epilético como um todo – não só as suas crises, mas também a sua qualidade de vida.

HN – Existem associações de apoio a doentes epiléticos e suas famílias?

IM – Sim. Podem recorrer à Liga Portuguesa Contra a Epilepsia. A Liga tem uma secção que é mais científica e dedicada aos profissionais, mas tem também apoio psicológico e apoio jurídico, entre outros, e, portanto, está disponível para fazer este contacto com os doentes e com os seus familiares. E também existem associações de doentes e familiares específicas para algumas doenças que causam epilepsia.

HN/RA

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