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A reforma do sistema de saúde

04/06/2024
por Filipe Charters de Azevedo Especialista em modelos de risco

As ideologias, sobretudo as mais extremas, exibem dois pecados: preguiça intelectual e incapacidade de fazer reforma. Os ideólogos não estão dispostos a mudar de opinião quando os dados mostram que estão errados. Não estão dispostos a admitir que não sabem de tudo. Não estão dispostos a entrar em diálogos sérios com aqueles que discordam. Não estão dispostos a reconhecer os compromissos e custos envolvidos em qualquer escolha política.

Nos próximos meses vai ser preciso reconstruir o SNS com reformas de longo prazo e medidas de curto prazo.

Aqui seguem os meus contributos para o debate.

Há três grandes reformas para a saúde:

  1. Garantir que a saúde tem receitas próprias e autonomia para as gerir – o Ministério da Saúde não pode depender do Ministério das Finanças. A segurança social sempre funcionou dessa forma, não se trata assim de uma ideia esdrúxula, incompatível com a nossa cultura ou enquadramento institucional. Com receitas próprias, seja por consignação dos impostos existentes, seja por uma contribuição social (por contrapartida de uma redução fiscal), a saúde funcionará além dos ciclos políticos e orçamentais. Temos de acabar os vetos de gaveta e a incapacidade de pensar o sistema de saúde a mais de um ano.
  2. Garantir que o sistema de saúde é gerido por subsistemas e não por uma entidade única. Não se trata de ter apenas um grande sistema de saúde, mas várias entidades que concorrem entre si na organização de serviços e, estes detalhes são críticos, pelos utentes e pela sua satisfação.

Não se trata de ter várias seguradoras, já que estas não fornecem adequados modelos de proteção de riscos. Nem de ter várias ADSE, ou SAMS, ou Associação de Cuidados de Saúde (ACS), já que estas entidades também fornecem serviços complementares ao SNS. Há muito que estas organizações deixaram, pela prática e pela força da lei, de serem subsistemas concorrenciais ao SNS.

A ideia é ter de facto vários sistemas de saúde no mesmo território.

Defendo, porém, que os subsistemas devem ser públicos. Num país com forte captura dos serviços públicos é necessário garantir uma separação clara (pelo menos acionista) entre financiadores e prestadores.

  1. Garantir que cada subsistema organiza a prestação de serviços da melhor forma. Cada subsistema deve ter a capacidade de desenvolver suas próprias redes e modelos de prestação de cuidados de saúde. Tem de haver múltiplas redes de saúde que organizam os cuidados de diferentes formas. Cada subsistema poderá estabelecer suas parcerias público-privadas (PPP), ou não, designar seu CEO e decidir sobre a existência das suas próprias Unidades Locais de Saúde (ULS), entre outras medidas.

Esta mudança em três pilares já foi mais consensual do que é hoje. Mas é possível.

Mas o que pode ser feito no curto prazo?

No curto prazo, há algumas medidas que o Governo pode adotar sem a necessidade de passar pelo processo parlamentar, uma vez que não envolvem questões estruturais ou ideológicas. Estas medidas concentram-se principalmente em desafios operacionais / gestão.

Por exemplo, o Estatuto do SNS garante (supostamente) um regime excecional de contratação sempre que houver dificuldades de recrutamento. Isto não representa autonomia. Autonomia seria a capacidade de planear, organizar, dirigir e controlar os recursos e a qualidade dos serviços prestados. O que o Estatuto realmente permite é um plano de contingência. Será necessário resolver os recursos humanos. De uma forma bem clara, é preciso definir quem contrata, quanto se paga e quem paga o corpo clínico do SNS.

No que aos Agrupamentos de Centros de Saúde diz respeito, o Estatuto do SNS estipula que estes se tornarão “institutos públicos de regime especial”, com autonomia administrativa e património próprio. Mas sem receitas próprias não há autonomia. Há direções de serviço. É preciso decidir, já, que autonomia se pretende dar ao principal braço de gestão dos cuidados primários do SNS.

E, finalmente, é preciso resolver a tensão que existe no financiamento e contratualização de cuidados. Por exemplo, os Hospitais centrais estão a operar com duas formas de financiamento para o mesmo serviço. Por um lado, são pagos por capitação e por outro, via ULS, são pagos por fee-for-service. Esta tensão vai permitir uma captura do sistema de cuidados e pouco controlo na prestação.

*É crucial reformar o SNS, garantindo autonomia financeira e descentralização para melhorar sua eficiência e sustentabilidade a longo prazo.

1 Comment

  1. Rui Leal

    Concordo com a retórica.
    No entanto a complexidade que por norma é a mais dispendiosa, é prestada pelos hospitais públicos.
    Na minha mera opinião o problema da autonomia financeira dos hospitais, centra-sr na falta de estratégia, transparência e prestação de contas dos gestores de topo por falta da função controlo.

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