Margarida Cruz: “Quando o diagnóstico não é feito a tempo os tratamentos terão que ser mais agressivos”

10/06/2020
No âmbito do Mês Internacional de Sensibilização para o Cancro Pediátrico, a Diretora-Geral da Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro (ACREDITAR) alerta para a gravidade das sequelas no atraso do diagnóstico da doença.                      

O medo, a preocupação o isolamento intensificaram-se com a chegada da Covid-19. Os cuidados médicos dos doentes oncológicos preocupam doentes, familiares e profissionais de saúde. 

Healthnews (HN) – Que medidas é que estão a ser implementadas pela Associação para garantir a segurança dos doentes?

Margarida Cruz (MC) – Desde logo tivemos que criar forma de proteger as casas. Restringimos totalmente a circulação dentro das mesmas, não entrava ninguém estranho dentro das nossas casas.

Em relação ao nosso pessoal criámos em março, ainda antes de a população em geral ter entrado em confinamento, equipas de trabalho que funcionam em espelho como é recomendado para estas áreas. Temos sempre pessoas que estão nas casas e equipas que estão duas semanas “resguardadas” para o caso de acontecer alguma coisa.

Devido à constante rotatividade nas casas, em qualquer entrada nova (de famílias e crianças novas) começou a ser imposta a testagem. Só depois do resultado negativo é que as pessoas são admitidas.

Dentro das casas fizemos aquilo que é normal: pusemos desinfetantes; as pessoas deixaram de estar nas casas com os seus sapatos e eram obrigadas a mudar de roupa. Criámos zonas “sujas” e zonas “limpas”. Tivemos que arranjar armários logo nas entradas para que as pessoas possam colocar tudo o que vem da rua. Comprámos máscaras que começámos a distribuir não só às famílias e às crianças que estão nas nossas casas, mas a todas as que vão fazer tratamento ao hospital de dia, dos vários hospitais de referência para a oncologia pediátrica e que vão lá levantar kits de equipamento de proteção individual, semanalmente.

O objetivo consiste em tentar minimizar o impacto das famílias e, ao mesmo tempo, proteger estas crianças que estão em muitos casos com o sistema imunitário mais debilitado devido aos tratamentos.

HN – Qual o risco dos doentes pediátricos relativamente à Covid-19?

MC – Os estudos que têm sido feitos relativamente a estas crianças revelam que, na maioria dos casos, quando o sistema imunitário não está muito debilitado o risco é equivalente ao de qualquer outra criança ou jovem. O problema é quando estão em tratamento e quando o sistema imunitário está mais debilitado. Na verdade, eles próprios já usavam máscara na rua ou em sítios onde houvesse mais movimentação de pessoas – mesmo antes desta pandemia

Portanto, as crianças que derivado aos tratamentos não tem o sistema imunitário tão debilitado, o risco é o comum de qualquer criança e jovem. É por isso que recentemente os médicos e hospitais tomaram a medida de que as crianças cujo sistema imunitário não esteja tão comprometido, possam eventualmente frequentar as escolas, uma vez que foi entendido que esse risco acrescido não acontecia.

Nas nossas casas temos, em simultâneo, crianças com o sistema imunitário mais debilitado e outras com o sistema mais “robusto”. Nesse sentido temos de os proteger a todos e criar todas estas medidas até porque as casas têm muita gente. A casa de Lisboa esteve o tempo todo cheia – desde março até há uma semana atrás – o que significa que é muita gente a habitar um único espaço e portanto, temos um dever especial de proteção e vigilância relativamente a estas crianças e famílias.

HN – Voltando à questão do estadio do cancro e de  poderem frequentar as aulas… do seu ponto de vista as escolas estão preparadas para garantir a segurança destas crianças?

MC – Eu diria que a preparação das escolas não será toda igual porque nem todas têm as mesmas condições. Aquilo que temos feito é: sempre que os pais nos sinalizam uma situação em que eles têm uma preocupação acrescida nós vamos à própria escola sensibilizar a instituição para a necessidade de estas crianças poderem ter de facto alguma proteção acrescida. Em vez de privarmos as crianças das escolas, e atendendo aos benefícios que tiram por estarem na escola presencialmente, optamos pela sensibilização da população escolar.

HN – No atual contexto pandémico quais são as principais dificuldades dos doentes e das famílias?

MC – Desde logo o receio acrescido. Ter um filho com cancro é uma preocupação que é facilmente entendível. Os pais têm medo de ir aos hospitais, dos tratamentos… aquele medo que eles já tinham pelo facto de terem um filho com uma doença de risco ficou acrescido com a complexidade da Covid-19 – isto em relação àqueles que já foram ou estão a ser diagnosticados.

Relativamente aos demais, a nossa grande preocupação é: será que as crianças e jovens estão a ser diagnosticados ao mesmo ritmo com que estavam a ser antes de existir a pandemia? Isto é particularmente preocupante porque quando o diagnóstico não é feito atempadamente os tratamentos terão que ser mais agressivos. Estes, normalmente, criam algumas sequelas. Todos os sobreviventes de cancro pediátrico, cerca de dois terços, tem sequelas físicas ou psicológicas e metade desses dois terços tem sequelas graves. Muitas dessas sequelas, como referi, tem a ver com os tratamentos. Se estes forem mais agressivos pelo facto das crianças chegarem mais tarde aos hospitais as sequelas irão ser maiores. É por isso que alertamos a população em geral de que deve ir ao médico em caso de suspeita.

HN – Como é que está a ser feito o acompanhamento médico destes doentes em tempo de pandemia?

MC – Em termos de acompanhamento médico, eu diria que as coisas têm corrido com normalidade e sem grandes alterações para todos aqueles que estão já diagnosticados e em tratamento. A única coisa que detetámos foi que em relação a muitos sobreviventes quando fazem consultas de acompanhamento – não estou a falar da criança e jovens que estejam em tratamento, mas sim daqueles que já estão fora de tratamento e que ainda estão em vigilância – sentem que a consulta de vigilância por via remota não é exatamente a mesma coisa.

HN – De que forma é que o confinamento afetou os doentes?

MC – Eles já estão muito isolados. Esta doença isola durante os internamentos. Há crianças e jovens que estão em quartos… os pais e as famílias estão muito centradas na criança doente e por isso, também, muito isolados. As famílias que já estavam a viver isso criaram maior isolamento e nalguns casos têm algumas dificuldades em lidar com essa situação.

Na área de intervenção hospitalar e das casas, todos os nossos cerca de 600 voluntários, a nível nacional, estão em casa. Todo o acompanhamento que eles faziam, as brincadeiras e jogos ficaram suspensos, o que significa que o isolamento reforçou-se dado que eles acabam por ter contacto apenas com meia dúzia de profissionais, com os médicos, mãe, pai ou algum irmão que os possa acompanhar.

Por um lado, o grande problema tem sido esse agravamento do isolamento. Por outro lado, sentimos que, fazendo parte da população, as famílias que já sofrem alguns inconvenientes económicos só pelo facto de terem o filho doente estão a sofrer agora mais impacto ainda do que aquele que já tinham. Estamos a receber muitos mais pedidos de apoio económico do que recebíamos antes da pandemia.

HN – Recentemente a Associação recebeu uma doação por parte da Zurich no valor de 35 mil euros. Onde é que esse dinheiro foi aplicado?

MC – Uma das áreas onde aplicámos o dinheiro do prémio que nos foi concebido foi exatamente no apoio económico destas famílias. A outra parte, para o reforço das proteções inerentes à Covid-19, ou seja, na compra de máscaras, gel desinfetante, dispositivos próprios para a utilização do gel desinfectante – aqueles que tínhamos eram pouco profissionais, não eram acionados com o pé. Também direcionámos o prémio para as alterações que tivemos que fazer com a implementação de móveis para por os sapatos e as roupas. Estamos agora a implementar sistemas de entrada nas casas que sejam relativamente automáticos e que permitam às famílias entradas e saídas com códigos de forma a cruzarem-se com o mínimo possível de pessoas.

Outra das áreas onde o dinheiro está a ser aplicado é nas desinfeções das casas. Para além da limpeza normal, de três em três meses, estamos a fazer desinfeções preventivas.

Felizmente até agora nunca tivemos nenhuma ocorrência alarmante. Já tivemos alguns “sustos”, pessoas que tiveram de ser testadas por haver alguma suspeita, mas nenhuma confirmada. Por enquanto as coisas estão relativamente tranquilas, mas o prémio foi um reforço importantíssimo para fazer face a estas despesas acrescidas, sobretudo, numa altura em que nós, enquanto associação, nos vimos confrontados não só com despesas acrescidas, com as quais não contávamos, mas também com a diminuição de receitas porque as pessoas que nos faziam donativos começam também a ter elas próprias dificuldades.

O prémio acabou por reforçar muito as nossas “defesas”.

HN – Que medidas é que estão a ser pensadas para a chegada do inverno?

MC – Neste momento temos garantido tudo aquilo que é possível de forma a manter um balanço entre a proteção e a qualidade de vida. Temos que ter algum cuidado na manutenção da qualidade de vida desta crianças e jovens, pelo que a única coisa que vai acontecer durante o próximo mês é que estamos a indagar junto das famílias se existe vontade por parte delas de terem as vacinas da gripe. Este ano estamos a ter um papel mais ativo nesta matéria, não para as crianças e jovens com cancro – porque a maior parte deles não pode ser vacinado – mas para a família nuclear que os acompanha, de forma a protege-la.

HN/Vaishaly Camões

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