Desafios e Tendências na Inovação Farmacêutica: A Perspetiva de Helder Mota Filipe

29 de Novembro 2024

O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Mota Filipe, abordou os principais desafios e tendências na inovação farmacêutica durante o 10º Congresso Internacional dos Hospitais. A sua intervenção focou-se na complexidade de garantir o acesso a medicamentos inovadores, considerando as limitações orçamentais e as mudanças demográficas e epidemiológicas em Portugal

Helder Mota Filipe iniciou a sua intervenção destacando a complexidade do tema “Medicamentos Inovadores – Garantir Valor a Qualquer Preço. O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos começou por identificar quatro desafios principais que a sociedade enfrenta atualmente no contexto da inovação farmacêutica e do acesso a medicamentos.

O primeiro desafio mencionado foi o envelhecimento da população. Mota Filipe salientou que, embora seja positivo que as pessoas vivam mais tempo, isso traz consigo uma série de implicações. Uma das consequências mais significativas é que, à medida que a população envelhece, as pessoas tendem a acumular mais doenças crónicas. Isto deve-se, em grande parte, ao facto de que a maioria das inovações terapêuticas que têm surgido no mercado é direcionada para a gestão de doenças, permitindo que as pessoas vivam mais tempo, mas não necessariamente curando-as.

O Bastonário recordou que o último medicamento que verdadeiramente curou uma doença foram os tratamentos para a hepatite C. Estes medicamentos conseguiram efetivamente eliminar a infeção e resolver o problema dos doentes crónicos. Contudo, a maioria dos outros medicamentos inovadores focam-se em melhorar a qualidade de vida e aumentar a sobrevida dos pacientes, muitas vezes transformando doenças agudas em crónicas, mas sem oferecer uma cura definitiva.

Esta realidade leva a uma situação em que, conforme as pessoas envelhecem, vão acumulando não apenas doenças, mas também as terapêuticas necessárias para tratar essas doenças o que representa um desafio significativo para os sistemas de saúde e para a sociedade em geral.

O segundo desafio identificado por Mota Filipe está intimamente relacionado com o primeiro e diz respeito à estrutura demográfica da sociedade portuguesa. Portugal, como muitos outros países desenvolvidos, enfrenta uma inversão da pirâmide etária. Isto significa que há mais pessoas idosas do que jovens, o que tem implicações profundas para a sustentabilidade do sistema de saúde e da segurança social.

O Bastonário explicou que esta inversão da pirâmide etária resulta em menos pessoas em idade produtiva para gerar riqueza e financiar o acesso aos cuidados de saúde daqueles que já não estão em idade ativa. Paradoxalmente, são precisamente estas pessoas mais velhas que tendem a acumular mais doenças e, consequentemente, necessitam de mais cuidados de saúde e medicamentos.

O terceiro desafio mencionado por Helder Mota Filipe foi a alteração dos padrões epidemiológicos. Ele observou que muitas doenças que no passado eram fatais têm-se transformado cada vez mais em doenças crónicas. Ora, acrescentou, esta transformação, embora positiva em termos de sobrevivência, implica um maior consumo de recursos ao longo do tempo, tanto em termos de terapêuticas como de dispositivos médicos.

Para ilustrar este ponto, o Bastonário apresentou dois exemplos paradigmáticos. O primeiro foi o progresso alcançado na área da oncologia. Embora não se aplique a todos os tipos de cancro, em muitos casos, os avanços terapêuticos têm permitido que os pacientes vivam mais tempo com a doença, transformando-a numa condição crónica em vez de uma sentença de morte a curto prazo.

O segundo exemplo, que Mota Filipe considerou particularmente ilustrativo, foi o caso da infeção por VIH. Ele recordou que nos anos 80, quando era estudante de farmácia, uma infeção por VIH era praticamente sinónimo de morte certa. O Bastonário mencionou a sua professora de microbiologia, Odete Santos Ferreira, e o desenvolvimento do AZT, um dos primeiros medicamentos para o tratamento do VIH.

Naquela época, os tratamentos disponíveis eram altamente tóxicos e os doentes tinham de tomar dezenas de comprimidos por dia. Além disso, os vírus desenvolviam rapidamente resistência aos medicamentos, tornando o tratamento ainda mais desafiador. Em contraste, atualmente, uma pessoa seropositiva pode controlar a sua condição com apenas um ou dois comprimidos por dia. Mais impressionante ainda, a esperança de vida de um doente infetado por VIH que adere ao tratamento é praticamente igual à de alguém não infetado. A única diferença significativa é a necessidade de continuar a tomar a medicação ao longo da vida.

O quarto desafio identificado por Mota Filipe está relacionado com as expectativas da sociedade. O palestrante observou que existe uma pressão crescente sobre os sistemas de saúde e os pagadores para fornecer acesso às melhores terapêuticas disponíveis para cada situação clínica. Esta expectativa, embora compreensível, coloca uma enorme pressão sobre os recursos limitados do sistema de saúde.

Além destes quatro desafios principais, o Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos destacou um aspeto adicional que considera fascinante, não apenas para os farmacêuticos, mas para todos os profissionais de saúde e para a indústria farmacêutica: o aumento da complexidade e especificidade dos novos medicamentos.

Mota Filipe enfatizou que atualmente existem medicamentos que são, na realidade, células vivas. Esta é uma realidade que há alguns anos parecia pertencer ao domínio da ficção científica, mas que hoje é uma prática clínica estabelecida. Doentes estão a ser tratados com estes tipos de terapias avançadas, o que representa um salto qualitativo significativo na medicina, mas também traz novos desafios em termos de produção, distribuição e administração.

Esta crescente complexidade e especificidade dos novos medicamentos leva a outro desafio significativo: o custo. Helder Mota Filipe sublinhou que todas estas novas terapêuticas, algumas acrescentando mais valor do que outras, são invariavelmente muito caras. Isto coloca uma questão fundamental: como acomodar esta nova realidade dentro de um orçamento limitado?

O Bastonário reconheceu que muitos destes novos medicamentos fazem realmente a diferença, seja por acrescentarem uma nova linha de tratamento para doenças que já tinham esgotado as opções terapêuticas existentes, seja por oferecerem, pela primeira vez, tratamentos para doenças raras que até há pouco tempo não tinham qualquer opção terapêutica. No entanto, o elevado custo destas inovações coloca uma pressão significativa sobre os sistemas de saúde.

Mota Filipe abordou então a questão do financiamento da saúde em Portugal, observando que, à primeira vista, a percentagem do PIB que Portugal dedica à saúde parece elevada em comparação com outros países europeus. No entanto, ele alertou que esta comparação pode ser enganadora. O verdadeiro problema, segundo o Bastonário, não é a percentagem do PIB dedicada à saúde, mas sim o tamanho absoluto do PIB português.

Portugal tem um PIB relativamente pequeno em comparação com muitos dos seus parceiros europeus. Isto significa que, mesmo dedicando uma percentagem significativa do PIB à saúde, o montante absoluto disponível para financiar o sistema de saúde e, em particular, para pagar por medicamentos inovadores, é limitado.

Este problema é exacerbado pelo facto de os medicamentos, especialmente os inovadores, terem preços que são estabelecidos a nível europeu. Embora não exista oficialmente um “preço europeu” único para os medicamentos, na prática, os preços tendem a ser semelhantes em toda a Europa. Isto significa que Portugal, com o seu PIB mais baixo, tem que pagar preços semelhantes aos países mais ricos da Europa por estes medicamentos inovadores.

Para ilustrar a magnitude deste desafio, Helder Mota Filipe apresentou alguns dados concretos. Citando números do INFARMED (Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde), ele mostrou que desde 2021, a despesa com medicamentos hospitalares em Portugal tem aumentado consistentemente a dois dígitos, ou seja, mais de 10% ao ano. Mais preocupante ainda, nos primeiros nove meses de 2023, este aumento atingiu os 14%.

O Bastonário enfatizou que esta não parece ser uma tendência passageira. Olhando para o pipeline de novos medicamentos em desenvolvimento, é expectável que nos próximos anos continuem a chegar ao mercado mais inovações terapêuticas. Isto é positivo do ponto de vista médico, mas representa um desafio significativo em termos orçamentais.

Mota Filipe apresentou então um número que considerou “assustador”: em Portugal, a despesa total com medicamentos, incluindo tanto o ambulatório como o hospitalar, já atinge os 3,6 mil milhões de euros por ano. Para contextualizar a magnitude deste valor, o Bastonário explicou que nos grandes hospitais, incluindo o Hospital de Santa Maria em Lisboa, os medicamentos já ultrapassaram os recursos humanos como a maior rubrica de despesa.

Olhando para o futuro, Helder Mota Filipe abordou a próxima revisão da legislação farmacêutica europeia, descrevendo esta revisão como uma tentativa de “quadratura do círculo”, pois procura conciliar objetivos que, à primeira vista, parecem contraditórios.

Por um lado, a nova legislação visa promover a reindustrialização da Europa no setor farmacêutico, tornando os medicamentos mais baratos. Por outro lado, pretende-se que esta indústria seja mais verde e sustentável, o que geralmente implica custos mais elevados. Além disso, há o objetivo de garantir um acesso mais rápido dos cidadãos europeus aos medicamentos inovadores.

O Bastonário questionou como será possível conciliar todos estes objetivos – uma indústria farmacêutica europeia mais forte, mais verde, capaz de produzir medicamentos mais baratos e de os disponibilizar mais rapidamente aos cidadãos, sugerindo que esta nova realidade oferece uma oportunidade para discutir de forma mais aprofundada estas questões complexas.

Helder Mota Filipe concluiu a sua intervenção reiterando a complexidade do tema e a necessidade de encontrar soluções equilibradas que permitam continuar a inovar e a melhorar os cuidados de saúde, mantendo ao mesmo tempo a sustentabilidade dos sistemas de saúde.

O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos deixou claro que não existem respostas fáceis para estes desafios. A garantia de acesso a medicamentos inovadores a um preço sustentável requer um equilíbrio delicado entre diversos fatores: o incentivo à inovação, a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde, a equidade no acesso aos cuidados de saúde e as expectativas crescentes da sociedade.

Mota Filipe sublinhou que esta discussão não se limita a Portugal. É um desafio global que todos os países desenvolvidos enfrentam, sublinhou, argumentando que Portugal enfrenta desafios particulares devido ao seu contexto económico e demográfico específico.

O Bastonário enfatizou a necessidade de uma abordagem multifacetada para enfrentar estes desafios. Isto pode incluir:

Repensar os modelos de financiamento da saúde para garantir a sustentabilidade a longo prazo.

Investir em prevenção e promoção da saúde para reduzir a carga de doenças crónicas.

Fomentar a investigação e desenvolvimento em áreas terapêuticas prioritárias.

Melhorar a eficiência do sistema de saúde para maximizar o valor obtido com os recursos disponíveis.

Explorar novos modelos de pagamento baseados no valor real que os medicamentos trazem para os pacientes e para o sistema de saúde.

Reforçar a colaboração entre todos os stakeholders – indústria farmacêutica, reguladores, profissionais de saúde, doentes e decisores políticos – para encontrar soluções inovadoras.

Investir na literacia em saúde da população para promover um uso mais racional e eficiente dos recursos de saúde.

Helder Mota Filipe concluiu a sua intervenção sublinhando que, apesar dos desafios, a inovação farmacêutica continua a ser crucial para melhorar a saúde e a qualidade de vida das pessoas. O verdadeiro desafio, argumentou, é encontrar formas de continuar a incentivar e a recompensar esta inovação, garantindo simultaneamente que os seus benefícios são acessíveis a todos os que deles necessitam.

O Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos deixou claro que esta é uma discussão que deve envolver toda a sociedade. “Não se trata apenas de uma questão técnica ou económica, mas de uma escolha societal sobre como queremos alocar os nossos recursos limitados e que tipo de sistema de saúde queremos para o futuro”, disse.

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