Em entrevista à HealthNews a propósito do mês da sensibilização para o cancro do pulmão, o Dr. José Miranda, reforça o papel da prevenção na batalha injusta frente ao cancro do pulmão, fala sobre as últimas opções terapeuticas e tece críticas ao atraso no diagnóstico e estadiamento destes doentes face à pandemia de Covid-19.
HealthNews (HN) – Uma breve descrição clinica do cancro do pulmão…
José Miranda (JM) – O cancro do pulmão é uma neoplasia maligna do aparelho respiratório que está principalmente associada ao consumo do tabaco, com uma taxa de mortalidade extremamente elevada por uma simples razão: é que normalmente o diagnóstico é feito extremamente tardio.
Nos melhores centros a nível mundial, só cerca de 15% a 20% dos doentes com cancro do pulmão é que podem ser operados, e mesmo sendo operado é altamente improvável que não precisem de fazer um tratamento complementar com quimio, radio ou imunoterapia.
Trata-se de um tumor com uma mortalidade muito elevada, sendo neste preciso momento, em Portugal, a principal causa de morte entre todas as neoplasias malignas.
HN – Pelo que consegui apurar, um bom prognóstico passa por um diagnóstico atempado e pelo início precoce do tratamento. Quais são os desafios do diagnóstico atempado, e porque é que esta doença só se deteta, na maior parte dos casos, demasiado tarde?
JM – Porque os doentes recorrem numa fase tardia da própria evolução da doença. É que o cancro do pulmão é uma neoplasia extremamente traiçoeira. Quando uma pessoa se começa a sentir doente, ou a sentir sintomatologia da doença, normalmente, já está numa fase avançada. Os diagnósticos precoces que fazemos são, como costumamos dizer, um “achado clínico”; são diagnósticos de acaso.
Por outro lado, neste preciso momento, na comunidade internacional, ainda não há exatamente um acordo sobre a realização de rastreios em larga escala das populações precisamente pela questão do custo-benefício. Nesta altura, ainda não se conseguiu chegar a uma conclusão quanto ao tipo de metodologia deve ser levada a cabo para uma relação satisfatória ao nível dos custos, porque fazer estes exames custa dinheiro. Fazer exames a larga escala para diagnosticar meia dúzia de casos em centenas de milhares de doentes coloca em causa a questão da sustentabilidade do programa.
No tempo da tuberculose em Portugal, há alguns anos, tínhamos carrinhas a fazer radiografias na rua. Isto não funciona com o cancro do pulmão. O grande drama que se verifica neste momento relativamente à possibilidade de diagnóstico precoce do cancro do pulmão é precisamente esta: é que não temos forma de ter uma estratégia minimamente eficaz e sustentável economicamente.
HN – E qual é o processo de um paciente com cancro do pulmão, desde o primeiro sintoma à terapia?
JM – Imaginemos uma situação em que um doente começa com um quadro de tosse, e vai ao médico. Faz um raio-x que não mostra rigorosamente nada de especial, mas a tosse permanece. Provavelmente o colega, no meio da avaliação e da terapêutica ineficaz que aplica numa primeira fase resolve mandar o paciente fazer uma TAC, e a TAC, “com alguma sorte”, descobre uma pequena anomalia. Estamos a falar de uma lesão central mas pequena, próxima do brônquio que promove uma pequena atelectasia, uma irritação da área brônquica, que provoque esse quadro clinico de tosse.
HN – Porque é que utiliza a expressão “com alguma sorte”?
JM – Porque se for uma lesão periférica provavelmente é uma lesão silenciosa, e não é clinica. Se se faz um TAC e se descobre uma lesão periférica num doente assintomático, ele faz a TAC por uma outra razão.
Na sequência de tudo isto, o doente faz uma broncoscopia, descobrem essa anomalia no brônquio, e faz-se uma biopsia com o resultado de que se trata de uma neoplasia.
Na sequência disto, o doente vai ter que fazer mais investigação para chegarmos a um estadiamento.
O estadiamento é uma classificação internacional em que definimos o quão avançado é o tipo de tumor. Isto é feito através do tamanho do tumor, do envolvimento das adenopatias mediastínicas, ou extra mediastínicas, e eventuais metastisações do tumor no pulmão ou fora dele. Apenas nos casos mais precoces poderão ser propostas cirurgias.
Finda a broncoscopia é necessário completar o estadiamento, que normalmente é feito através de uma PET scan. A PET scan é uma espécie de uma TAC em que se administra um produto radioativo glicolítico que tem um especial interesse pela captação das células com alta atividade metabólica, ou seja, células neoplásicas e células inflamatórias. E consequente a sua captação precoce ou tardia, podemos ter ideia relativamente à probabilidade de se tratar de facto de um processo neoplásico ou de um processo inflamatório, mas normalmente, na presença de um doente com uma neoplasia pulmonar é muito pouco provável que hajam marcações não relacionadas com a atividade tumoral.
Findo todo esse processo, o doente é levado a uma reunião de grupo multidisciplinar. São estas as normas de boas práticas que se fazem em Portugal e em todo o mundo. Esta reunião tem presente um colega da oncologia médica, um colega da imagiologia, da radioterapia, da pneumologia oncológica, da medicina nuclear e um colega da cirurgia, e é feita uma decisão terapêutica: o doente é para operar? Se não é para operar é para fazer tratamento por quimioterapia com dois objetivos – através da neoadjuvância preparar o doente para sabermos se, numa segunda fase poderá ser operado, ou então um tratamento adjuvante caso não haja mesmo hipótese de operar.
É que a cirurgia em si só é valida se houver provas de benefício para o doente. Não faz sentido operarmos um doente se só lhe vamos criar sofrimento de forma desnecessária.
Definitivamente que a cirurgia, que só podemos fazer nos estadios precoces, até ao estadio 3A é o preferencial.
HN – E que outros tipos de terapias poderão ser utilizadas, e quais os avanços e introduções terapêuticas mais recentes?
JM – Neste preciso momento, além da cirurgia e da quimioterapia temos a radioterapia, que em algumas circunstâncias pode estar indicada para os doentes.
A cirurgia é um processo de amputação, retiramos pulmão e capacidade respiratória ao doente. Para retirarmos isto temos que nos assegurar que o pulmão remanescente, assim como a capacidade cardíaca conseguem produzir o mínimo de qualidade de sobrevida ao doente. Não podemos, como costumo dizer “operar um doente e mandá-lo para um ventilador. Não podemos, não é minimamente razoável.
Nestas circunstâncias e em doentes com uma função pulmonar extremamente depauperada, temos a tendência de apresentar os pacientes à radioterapias para fazer uma radioterapia extereotáxica, que é muito localizada e atinge unicamente a zona da lesão. Não é a solução perfeita, mas é uma solução muito boa em alguns doentes.
Nos últimos anos tem havido bastante progresso com os marcadores e o estudo da genética dos tumores. E neste preciso momento há uma série de fármacos em desenvolvimento com grande implementação e sucesso no cancro do pulmão, que é a imunoterapia. A associação da imunoterapia com a cirurgia ainda não está bem explanada e decorrem ainda alguns ensaios a nível internacional para sabermos se podemos utilizar a imunoterapia como neoadjuvante, ou seja, antes da cirurgia em alguns doentes para permitirmos que sejam operados. Portanto, esta é uma porta que está aberta, e devemos ter notícias dentro de alguns anos.
HN – Quando me estava a perparar para esta entrevista deparei-me com a “via verde” para doentes oncológicos. O que é isto e como é que funciona hoje, que os serviços de saúde estão praticamente entupidos graças à Covid-19?
JM – A via verde dos doentes oncológicos deveria ser um processo da definição das regras do jogo e cumprimento de prazos da parte do ministério da saúde aos seus hospitais- imagino eu. E digo imagino eu porque uma coisa é a teoria e outra é a prática. Neste preciso momento, não sei que via está a funcionar. Não sei se será cinzenta, se será preta… Porque a nível nacional temos grandes constrangimentos ao nível do diagnóstico e estadiamento das neoplasias em geral. E a razão é muito simples: esse grande papão que é o Covid-19.
Neste preciso momento, na zona Norte, temos tempos de atraso de realização de PET scans que é totalmente inaceitável. Vai para cima de 30 dias. Nestas circunstâncias, se me permite, a via verde está muito descolorida. Acontece que outros valores se levantam neste momento, mas estes doentes não podem ser esquecidos.
A ideia, do ponto de vista teórico é termos uma forma de sinalizar os doentes para qe possam rapidamente ser observados por alguém da área da oncologia médica ou da pneumologia oncológica e fazer rapidamente os exames de estadiamento e diagnóstico e encaminhá-los rapidamente para a atividade cirúrgica.
Em termos da cirurgia, neste preciso momento, não existe lista de espera em praticamente nenhum centro em Portugal, porque o que está a acontecer é que temos um baixo aporte de pedidos de cirurgia. Ou as pessoas têm medo de ir aos hospitais ou o facto de os cuidados de saúde primários terem grandes dificuldades em avaliar os doentes não-covid, ou mesmo as próprias instituições hospitalares passam para segundo plano a avaliação destes doentes não-covid.
HN – Tocámos agora no tópico do Covid-19. De que forma é que estas duas patologias se relacionam? O covid-19 tem implicações nos doentes com cancro do pulmão?
JM – Claramente, no sentido em que atrasa o diagnóstico e na complexidade, porque o órgão preferencial do Covid-19 para atuar é precisamente o pulmão. E portanto, só este facto leva-nos o dobro ou triplo do tempo para realizar uma simples broncoscopia, quer em questão de desinfeção, quer em questão do próprio risco de manipulação dos doentes. É que os doentes têm que ter um teste de Covid negativo, se for positivo levantam-se outros problemas: neste preciso momento, por questões de guidelines, não operamos doentes com Covid. Pelo simples motivo que a taxa de mortalidade é inaceitável.
O pior que pode acontecer é associar as duas coisas.
HN – Este é o mês da sensibilização para o cancro do pulmão, e pergunto-lhe qual é a importância deste tipo de iniciativas?
JM – Estas iniciativas são fundamentais no sentido de dar informação à opinião pública. É que o cancro do pulmão é uma batalha muito difícil cuja vitória é difícil, onde imperam as boas práticas. Se vamos entrar numa guerra difícil, temos de melhorar as nossas probabilidades a favor, pela prevenção. Estas campanhas são mais um peso para a opinião pública, nomeadamente na prevenção do consumo do tabaco.
Não deixa de ser curioso que, nos últimos anos, o que temos vindo a assistir é uma diminuição da incidência nos homens e um aumento nas mulheres. Porque os homens estão a deixar de fumar, ao contrário das senhoras que estão a começar. E portanto, isto é uma consequência que se vê ao fim de 15/20 anos.
O tabaco é o inimigo número um do cancro do pulmão, e a melhor forma de ganharmos esta batalha é precisamente termos estas campanhas para sensibilizarmos a população a que não fume.
Entrevista de João Marques
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