Amnistia Internacional: “Pandemia expôs legado de desigualdades e foi “arma” contra direitos humanos”

7 de Abril 2021

A Amnistia Internacional denunciou hoje que a pandemia expôs um “terrível legado” de políticas que têm perpetuado a desigualdade, a discriminação e a opressão no mundo, bem como foi usada por líderes como “arma” para atacar os direitos humanos.

Esta é uma das conclusões centrais do relatório anual da organização não-governamental (ONG), divulgado hoje, que faz uma análise da situação dos direitos humanos à escala mundial durante 2020, com dados de 149 países.

“A pandemia global expôs o terrível legado de políticas deliberadamente divisórias e destrutivas que perpetuaram desigualdade, discriminação e opressão, e abriram caminho à devastação causada pela [doença] covid-19”, lê-se no documento.

Para a Amnistia Internacional, a crise pandémica colocou a nu a erosão dos serviços públicos e amplificou uma “enorme desigualdade sistémica a nível mundial”, cenário desencadeado por “décadas de liderança tóxica” e que teve um impacto “devastador” e “desproporcional” naqueles que já eram marginalizados, como as minorias étnicas, os migrantes e refugiados, as mulheres, as pessoas com deficiência e mais idosas, as crianças e a comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgénero e Intersexo).

A organização destaca igualmente o impacto da crise naqueles que estiveram na chamada “linha da frente”, em particular os profissionais de saúde, trabalhadores migrantes e os trabalhadores do setor informal, que também “foram traídos por sistemas de saúde negligenciados” e “apoios socioeconómicos irregulares”.

Em 42 dos 149 países monitorizados, a ONG também documentou alegações sobre situações de assédio ou de intimidação por parte das autoridades contra estes profissionais no contexto pandémico.

“A covid-19 expôs e aprofundou brutalmente a desigualdade dentro dos países e entre eles, e destacou a impressionante negligência dos nossos líderes pela humanidade comum. Décadas de políticas divisórias, medidas de austeridade e escolhas erradas de líderes em não investir na melhoria de infraestruturas públicas em ruínas, deixaram a este vírus demasiadas presas fáceis”, diz Agnès Callamard, a nova secretária-geral da organização.

“Neste ponto da pandemia, mesmos os líderes mais iludidos teriam dificuldade em negar que os nossos sistemas sociais, económicos e políticos estão destroçados”, reforça a especialista francesa, nomeada para o cargo em março passado.

Segundo a organização, a resposta à pandemia foi prejudicada por líderes que “exploraram impiedosamente” a crise e fizeram da covid-19 “uma arma” para lançar novos ataques aos direitos humanos.

“Alguns tentaram normalizar as medidas de emergência autoritárias que introduziram para combater a covid-19, enquanto uma variante altamente perigosa de líderes foi mais além. Viram isto como uma oportunidade para consolidar o seu próprio poder”, denuncia a secretária-geral.

Um dos padrões principais identificados pela Amnistia Internacional foi o de autoridades aprovarem legislação criminalizando críticas relacionadas com a pandemia e usarem a crise sanitária como “pretexto” para continuar a suprimir o direito à liberdade de expressão.

Vários líderes usaram força excessiva em protestos ocorridos durante os confinamentos decretados e outros foram mais longe ao recorrerem da pandemia como uma “distração” para suprimir vozes opositoras e “perpetuar outras violações dos direitos humanos”, segundo a ONG.

“Instituições internacionais como o Tribunal Penal Internacional e os mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas existem para responsabilizar Estados e perpetradores individuais. Infelizmente, 2020 mostra que estas foram confrontadas com um impasse político por líderes que procuram explorar e minar as respostas coletivas às violações de direitos humanos”, afirma Agnès Callamard.

A ONG aponta igualmente o dedo aos líderes mundiais que privilegiaram “os interesses próprios nacionais” na resposta à covid-19 e que dificultaram “os esforços de recuperação coletivos”.

Entre esses, de acordo com a organização, constam o ex-Presidente norte-americano Donald Trump, ao ter contornado os esforços de cooperação global ao comprar a maior parte do fornecimento mundial de vacinas contra a covid-19, e o líder chinês Xi Jinping, cujo governo censurou e perseguiu profissionais de saúde e jornalistas quando estes tentaram alertar sobre o novo coronavírus (SARS-CoV-2).

A Amnistia Internacional diz ainda que os países ricos também falharam em pressionar as farmacêuticas a partilharem conhecimento e tecnologia, de forma a expandir o fornecimento global de vacinas.

Críticas igualmente apontadas ao G20 (as 20 maiores economias do mundo), que, como recorda a organização, ofereceu-se para suspender os pagamentos de dívida dos países mais pobres, mas exigiu, para mais tarde, um reembolso com juros.

“A pandemia lançou uma dura luz sobre a incapacidade do mundo de cooperar efetivamente em tempos de extrema necessidade global”, aponta Agnès Callamard, que deixa um apelo para uma “reflexão” e uma “reconfiguração” dos atuais sistemas, de forma a “construir um mundo alicerçado em igualdade, direitos humanos e humanidade”.

Outras das conclusões gerais do relatório é que perante o “falhanço” dos governos e as respetivas “políticas regressivas”, muitas pessoas sentiram-se inspiradas para levantar a voz em todo o mundo para contestar o racismo, a violência de género ou outras formas de abusos e de repressão.

“Em 2020, a liderança não veio do poder, do privilégio ou de especuladores. Veio das inúmeras pessoas que marcharam para exigir mudanças”, indica a representante, destacando, entre outras correntes de contestação, a repercussão mundial do movimento norte-americano contra a discriminação, o racismo e a violência policial ‘Black Lives Matter’, e as conquistas legislativas para combater a violência contra as mulheres ou alcançar a descriminalização do aborto, como aconteceu na Coreia do Sul, Irlanda do Norte ou na Argentina.

Debilidade dos sistemas de saúde na Europa foi exposta pela covid-19

A Amnistia Internacional afirmou hoje que a pandemia revelou uma Europa com sistemas de saúde debilitados pela austeridade e com carência de equipamentos de proteção, situação que “exacerbou a mortalidade” no continente e que requer investigação.

“A pandemia evidenciou o estado enfraquecido de muitos sistemas de saúde da Europa Ocidental após anos de medidas de austeridade e a escassez crónica de recursos dos sistemas de saúde na Europa de Leste e Ásia Central”, refere a organização não-governamental (ONG) no seu relatório anual, hoje divulgado, no capítulo dedicado ao continente europeu que também integra países eurasiáticos como o Cazaquistão ou o Quirguistão.

Lembrando que esta região foi duramente atingida em 2020 pela pandemia de covid-19, “ao registar [no final do ano] cerca de um terço dos óbitos” a nível global, a Amnistia Internacional denuncia, entre outros fatores, que “a falta de recursos dos sistemas de saúde e a falha no fornecimento de equipamento de proteção individual adequado exacerbaram as taxas de mortalidade”.

Segundo a organização, o número de infeções e de óbitos variaram amplamente entre os diferentes grupos da população europeia, destacando os idosos residentes em lares, que representaram “cerca de metade das pessoas que morreram por causa da doença em alguns países”, e os profissionais de saúde e os trabalhadores domiciliários, com o registo de taxas superiores “às vezes devido à falta de fornecimento de equipamento de proteção individual adequado e suficiente”.

Reino Unido, Rússia, Itália, Quirguistão e Espanha apresentavam, em setembro de 2020, a maior taxa de mortalidade entre os profissionais de saúde, de acordo com o relatório.

“Os governos devem investigar as mortes desproporcionais em ambientes como os lares de idosos e as falhas em fornecer equipamento de proteção individual adequado”, defende a ONG, apelando a um acesso igualitário e “urgente” às vacinas dentro e entre os países europeus e a uma cooperação “imperativa” entre Estados para garantir que “tratamentos e vacinas sejam admissíveis, pouco dispendiosos, acessíveis e disponíveis para todos”.

A organização foca ainda que os trabalhadores do continente europeu enfrentaram “barreiras no acesso a uma segurança social adequada” e que as medidas de saúde pública afetaram “desproporcionalmente indivíduos e grupos marginalizados”.

Foi o caso de comunidades ciganas e de refugiados e requerentes de asilo que foram colocados sob “quarentenas forçadas discriminatórias” em diversos países (Bulgária, Chipre, Hungria, Rússia ou Sérvia), muitos deles em locais sobrelotados e insalubres, como o campo de Moria, na ilha grega de Lesbos, destruído posteriormente por um incêndio que deixou 13 mil pessoas sem abrigo.

A Amnistia Internacional adverte igualmente que as respostas governamentais à covid-19 em certos países da região ameaçaram um vasto conjunto de direitos e “expuseram o custo humano da exclusão social, da desigualdade e do alcance excessivo do Estado”.

“Muitos governos também utilizaram a pandemia como uma cortina de fumo para a tomada do poder, para a repressão das liberdades e como um pretexto para ignorar as obrigações em matéria de direitos humanos”, reforça a ONG, referindo que o “uso ilegal da força pela polícia” foi observado em diversos países (Bélgica, França, Roménia, Espanha, entre outros).

Em contextos onde as liberdades já estavam severamente circunscritas, 2020 viu vários países restringi-las ainda mais, diz a organização, dando o exemplo da Rússia, onde as autoridades passaram a classificar pessoas críticas à liderança do Presidente Vladimir Putin como “agentes estrangeiros”, designação que no passado só abrangia organizações, com o objetivo de evitar a ingerência por parte de ameaças externas ao país.

Na Hungria, destaca também a Amnistia Internacional, o governo do primeiro-ministro, Viktor Orbán, alterou o Código Penal, introduzindo penas de prisão de até cinco anos por “divulgação de informação falsa” sobre a covid-19.

Já na Polónia, e em plena crise pandémica, o executivo “violou os direitos humanos de mulheres e grávidas” e colocou em risco a saúde da população feminina polaca “ao introduzir uma cruel e perigosa proibição quase total do aborto”, prossegue o relatório.

Os governos de Budapeste e Varsóvia também são referenciados entre aqueles que continuaram em 2020 na Europa a tomar medidas que “corroeram a independência do poder judicial”.

Ainda nesta área, a ONG refere as iniciativas das autoridades da Turquia para “minar as garantias de um julgamento justo” naquele país, através de medidas para controlar associações de advocacia e de perseguições a causídicos.

Entre as graves violações que documentou no “velho continente”, a Amnistia Internacional destaca também a situação vivida na Bielorrússia após as eleições presidenciais de agosto passado, escrutínio contestado pela oposição e que desencadeou protestos sem precedentes naquele país.

“A flagrante repressão de todas as formas de oposição e dissidência política (…) prolonga-se continuamente. Os manifestantes são detidos, torturados e condenados a longas penas de prisão apenas por exercerem pacificamente os seus direitos humanos”, diz a ONG.

A Amnistia Internacional não esquece as questões migratórias que tanto dividem a Europa, criticando, entre outros aspetos, “as devoluções ilegais [conhecidas como ‘pushbacks’]”, “a violência nas fronteiras terrestres e marítimas” e a decisão de vários países atrasarem ou suspenderem o processamento de pedidos de asilo durante a pandemia.

 

HN/NR/LUSA

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