A desforra de W.C. Beresfor
“Ergue-te, vingador, dos meus ossos.”
Virgílio – Eneida
Desde início de maio que vem aumentando o número de infetados com covid em Portugal, sobretudo à custa de moradores da grande Lisboa. Assim sendo, difícil se torna ilibar de toda a responsabilidade os arruaceiros que festejaram a vitória do SCP, de forma tão incivilizada, por este inoportuno descalabro. Também, já não é possível considerar injustificada a cerca sanitária que vários países estão prescrevendo a Portugal, porque se tornou, gostemos ou não, um dos destinos mais perigosos da Europa.
Por outro lado, presenciamos o grotesco espetáculo da invasão de hooligans anglo-saxónicos a exibirem pela cidade invicta o seu total desrespeito pela leis e normas lusas, sob o olhar benévolo das forças da ordem. Ficou patente ao deplorável ponto a que chegou a soberania tuga. O marechal Beresford foi finalmente redimido da desfeita que os revoltosos de 1820 fizeram ao impedirem-lhe o desembarque em Portugal, pondo assim fim à odiosa ocupação britânica. Para além de muitos euros, o futuro dirá com que mais os turbulentos súbditos de S. Majestade nos obsequiaram.
Enfim, estamos perante uma nova versão da venda de indulgências: em troca duns pratos de lentilhas obliteram-se as preocupações com a saúde pública, anestesia-se a dignidade nacional e olvidam-se os custos económicos a longo prazo.
Tempos nebulosos
“A humanidade que deveria ter seis mil anos de experiência, recai na infância a cada geração”
Tristan Bernard
É sabido que as falsas ciências vicejam principalmente entre três categorias de adeptos: religiões, ideologias autoritárias e agentes económicos. Na atual pandemia, o obscurantismo anticientífico excedeu o que se podia imaginar e veio comprovar que os regimes, ideologias ou dirigentes políticos totalitários convivem mal com o conhecimento científico, isto é, com a realidade.
Trump e Bolsonaro (sobretudo este) assumiram o papel de demiurgos e, sobrepondo-se ao conhecimento científico, chegaram ao ponto de recomendarem guide lines para o tratamento da Covid! Curiosamente, ambos estão ligados às alas mais obscurantistas do cristianismo. O caso da Índia é outro exemplo da trágica parceria entre o fanatismo religioso e o autoritarismo político. O presidente Modi, um extremista hindu, ignorou os avisos dos epidemiologistas e optou por promover festivais religiosos e meetings políticos, com o resultado que se vê. Já Putin, embora não tenha enveredado pelo negacionismo explícito, resolveu esborrachar as boas normas de investigação farmacológica e ditar a eficácia da “sua” vacina. A verdade, para estes personagens, é outorgada nas chancelarias e diretórios partidários, e não desvendada nos laboratórios.
Num outro registo, diferente do negacionismo, temos o (ab)uso da ciência para fins políticos. Outra coisa não faz Joe Biden ao desfraldar com fragor suspeitas sobre alegada responsabilidade chinesa na eclosão da pandemia.
Por outro lado, também é verdade que as falsas ciências colhem apoio entre largas camadas da sociedade civil, que aderem ao obscurantismo, muitas vezes sem ligação ao fanatismo religioso ou a autoritarismo político. Refiro-me aos movimentos antivacinas.
O século XXI, que aparentava ser iluminado pelo acumular de conhecimento, assiste ao alastrar dum manto obscurantista. O atual cenário mais parece um guião de obra de ficção científica mergulhada num pessimismo plúmbeo, a evocar “Fahrenheit 451”, “Cântico para Leibowitz”, ou um cinzento episódio da série “Black Mirror” da Netflix. Uma cortina de ferro parece descer paulatinamente entre a Humanidade e o conhecimento baseado na razão.
A bola
“Fanático é o sujeito que não muda de ideia e não pode mudar de assunto.”
Churchill
Mas regressemos a este retângulo pendente sobre o oceano. No que toca à pandemia, a religião maioritária, o catolicismo, não interferiu com a ciência fazendo jus ao preceito “A César que é de César, a Deus o que é Deus” (Mateus 22:21) e a sua hierarquia pautou-se por um civismo assinalável. Já do lado dos políticos notam-se pontuais manifestações de negacionismo, oblíquas, quase envergonhadas, mormente vindas da direita, mas longe das bolsonadas, trumpices, ou de tontices anarquistas. Contudo, os episódios protagonizados pelos fãs futebolísticos, nacionais e estrangeiros, nas capitais, a do país e a do Norte, revelam um player inesperado, nesta gesta de afirmação das anticiências: o futebol. Melhor explicando: a permissividade que permitiu as arruaças protagonizadas pelos hooligans e a indulgência que mereceram os desmandos dessas hordas deixam entrever uma faceta inesperada de subserviência face à instituição “bola”, por parte, quer do poder político, quer mesmo de profissionais de saúde.
Aqui chegado cumpre fazer um parêntesis para dizer que me parece duvidoso que da atuação da DGS e do Ministério da Saúde durante a pandemia se pudesse esperar mais eficiência. Duvido que outros tivessem feito melhor. Fácil é apontar falhas perante uma situação de tal modo caótica, imprevisível e holística. Porém, quando chegou a tomar decisões sobre a “bola”, estalou o respeito pelos critérios científicos.
Ouvimos o Secretário de Estado e Adjunto da Saúde comentar que não queria culpabilizar ninguém pelos motins sportinguistas. Ora essa! Inequivocamente há que culpabilizar os rufias que protagonizaram a arruaça, desrespeitaram as mais básicas regras de segurança sanitária e afrontaram a polícia. E não foi o único a encarrilar pela vereda da ambiguidade: o nosso Bastonário e comentadores políticos também vieram defender a legitimidade das manifestações de regozijo, mas esquecendo-se de condenar o tumulto em que redundaram. Ora estamos a falar de gente dotada de livre arbítrio e que optou pelo caminho errado e, como tal, deve ser repreendida, sem prejuízo de atribuir responsabilidades às entidades que deram o aval a um evento que tinha tudo para correr mal. Condenar o convívio de centenas de jovens em São Pedro de Alcântara até ser dispersos pela admoestação da PSP e legitimar, ainda que de modo oblíquo, o festejo da vitória dum clube de futebol, como se não houvesse pandemia e que incluiu enfrentamentos com as forças de segurança, é enveredar por uma duplicidade de critérios esquizoide.
O caso do Porto foi burlesco: John Bull despacha as suas equipes de futebol para se defrontarem em solo lusitano, comboiadas por milhares de hooligans, que fizeram questão de desrespeitar o país anfitrião. Ainda é cedo para computar as consequências sanitárias desta incursão, mas podemos concluir que, em termos políticos, adquiriu nuances de apoptose da autoridade do estado. E sem autoridade do estado, é também a saúde que fica em risco. Estranhamente a Dra. Graça Freitas vem afirmar que no champions no Porto a “maior parte das coisas correu bem”! Seria bom que tivesse explicado quais.
E a desbunda futebolística continuou, com os tugas aglomerados, máscaras repuxadas para o queixo, para assistir, em prazenteira comunhão (entre si e com os coronavírus), aos jogos do euro.
Para colocar a cereja no topo do bolo, a segunda figura da hierarquia do Estado vem incentivar uma verdadeira ofensiva bacteriológica contra a vizinha Espanha … em nome do futebol. Não lhe bastam as batalhas de Ameixial, Castelo Rodrigues ou Montes Claros como desforra da pretérita derrota em Toro! Só por negacionismo puro e duro se pode incentivar uma expedição maciça de portugueses à região mais infetada de Espanha. Dileto discípulo de Bolsonaro, pretenderá Ferro Rodrigues afiançar que no pasa nada?
Resumindo. Ao longo da pandemia não houve indícios de que as diversas religiões tenham sido isentadas de cumprimento de regras sanitárias. Pontualmente, houve alguma vista grossa no que toca a eventos organizados por partidos políticos. Mas nos últimos meses foram dados sinais que o futebol passou a beneficiar dum estatuto de exceção, de que não estava isento até à data. Por um lado, foram autorizados por quem de direito dois resfolegadouros que, já sabia, só por milagre iriam correr bem. Por outro lado, surgiram declarações cuja ambiguidade abre portas a interpretações legitimadoras dessa mesma isenção para os adeptos da “bola”, e que resvalam para o domínio do anticientífico.
Terminemos com breve comentário (que vai já longa a prosa) sobre os agentes económicos e fack science. No início de março do sinistro 2020, a Dra. Graça Freitas foi alvo de múltiplas e acesas críticas, nomeadamente do sector do turismo, por ter tornado pública uma projeção de um milhão de infetados em Portugal. Dezasseis meses depois, ultrapassamos já os 875.000 casos e, pelo andar da carruagem, a tal projeção com sete dígitos é cada vez menos implausível.
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