Luís Gouveia Andrade Médico Oftalmologista Grupo Lusíadas Saúde Director Geral da InfoCiência

A Morte em Medicina: Desfecho de uma Doença, Falha Clínica ou uma Bênção?…

03/13/2021

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A Morte em Medicina: Desfecho de uma Doença, Falha Clínica ou uma Bênção?…

13/03/2021 | Opinião

A morte de um ser humano deixa sempre um vazio. Não. Deixa um buraco na nossa alma e na nossa vida que o tempo suaviza mas não tapa, que a vida dilui mas não deixa esquecer.

A morte, sendo natural e inevitável, é sempre dolorosa, não desejada, imprevista, mesmo quando sabemos que a alternativa seria pior, na forma de sofrimento, de dor, de dependência.

Para um médico, a morte de um paciente é um sinal de derrota. Seja numa cirurgia, seja perante uma doença aguda ou crónica, a perda de um paciente obriga a repensar todos os passos dados, coloca em questão a nossa experiência e conhecimento, faz-nos sentir seres menores. E deixa-nos hesitantes perante os outros doentes que em nós confiam.

Também aqui o tempo ajuda, e os novos doentes e os novos sucessos permitem-nos fazer as pazes connosco, recuperar a nossa autoestima e a nossa confiança.

Depois existem os doentes de uma vida que perdemos apenas porque sim, porque é assim. E aí vemos neles reflectida a nossa mortalidade, a nossa fragilidade. E sabemos que um dia seremos nós…

Para a Medicina, a morte tornou-se o inimigo a combater e a ciência inscreveu nos seus desígnios a missão de prolongar a vida, de aumentar a esperança de vida, de nos fazer viver mais, mas nem sempre melhor. E aí reside uma das questões centrais desta reflexão. Deve o nosso objectivo enquanto médicos e cientistas ser prolongar a vida dos nossos doentes e das pessoas saudáveis? Deve cada um de nós aspirar a essa extensão de garantia como propósito maior, como estrela que nos guia, como motor que nos move?

Pessoalmente, penso que não. Cito, como exemplo, os dados disponíveis para Portugal. De acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2018 a esperança de vida para uma pessoa com 65 anos era de 19,5 anos (17,6 anos para os homens; 20,9 anos para as mulheres). Contudo, a esperança de vida saudável, ou seja, os anos vividos com boa saúde, eram apenas 7,3 anos.

Isto significa que, em Portugal, uma pessoa de 65 anos poderá viver, em média, até aos 85 anos, mas que, a partir dos 73 anos viverá com uma saúde precária. Em média, 12 anos de vida sem saúde, a recorrer a médicos, a ser submetido a cirurgias, a consumir medicamentos, a sofrer, a depender de terceiros.

E este não pode ser o paradigma, porque não faz qualquer sentido dar anos de vida às pessoas apenas para elas estarem doentes…

O fim de vida tem sido amplamente debatido, colocando em confronto ciência, religião, ética e política e este será um debate eterno sobre o qual o consenso é impossível, dada a complexidade e sensibilidade da matéria em questão.

Mas, no plano da Medicina e da Ciência, importa sempre individualizar cada caso, cada paciente e, de acordo com as melhores práticas, oferecer-lhe tudo o que for possível para o ajudar, para debelar a sua doença, para restituir a sua saúde, para lhe devolver a sua condição pré-morbilidade e a sua qualidade de vida. E, neste processo, sabemos que nem sempre se pode vencer. Porque a doença é incurável, porque o estado do doente não o permite, por inúmeras razões que emanam de cada situação individual. E, por isso, devemos estar preparados para essas derrotas, estabelecendo o equilíbrio possível entre afecto e distância para que saibamos oferecer calor humano sem que fiquemos irremediavelmente chamuscados com cada perda. E, isso sim, garantir sempre dignidade e ausência de dor até ao último instante.

A falha é pior. Dói mais, revolta mais, questiona mais. Mas também ela é inevitável, não por incúria, não por erro grosseiro ou negligência, mas pela absoluta incapacidade de, para cada doente, para cada doença, para cada binómio doente-doença, tudo abarcar, tudo prever, tudo saber. Refiro muitas vezes o lado empírico da Medicina, que a tecnologia, os modelos, a inteligência artificial têm ajudado a colmatar. Mas ele persiste e, dada a complexidade biológica e bioquímica do ser humano, irá sempre persistir.

Podemos, e devemos, citando Becket, falhar outra vez e falhar melhor mas, se não soubermos aceitar essa nossa vulnerabilidade enquanto médicos e enquanto pessoas, cada derrota, cada vida perdida será um escolho enorme na nossa vida e pesará infinitamente mais do que todo o bem que fizemos, do que todas as vidas que salvámos ou melhorámos.

Finalmente, a morte como uma bênção. E muitas vezes o é. Quando nada existe para lá da respiração, do bater do coração, das funções vitais básicas, a vida já não o é. Quando a dor nos acompanha todo o dia, nos tira o sono, nos enlouquece, a vida já não o é. Quando tudo o que fazemos ou necessitamos tem de ser fornecido ou ajudado por terceiros, quando a nossa autonomia está perdida e a nossa intimidade exposta, a vida já não o é. E, nesses casos, a morte marca o fim desse estado vegetativo, dessa dor constante, dessa autonomia arrasada, dessa intimidade despida. E pode ser uma bênção.

Nada disto corresponde a uma tomada de posição sobre o fim de vida. É um tema sobre o qual nem me atrevo a escrever por entender que terá tantas respostas quantas as pessoas que a ele se dedicarem e, sobretudo, quantas as pessoas que o vivenciarem. Limito-me, enquanto médico e homem, a pensar sobre tudo isto, sobre a morte como o derradeiro passo da vida e como na Medicina ela se pode manifestar.

Competirá a cada um de nós, com base na nossa estrutura pessoal, familiar e profissional (por mais que pensemos o contrário, nunca separamos plenamente todos estes elementos) ir aprendendo a lidar com ela, quando ela é inevitável, quando para ela inadvertidamente concorremos e quando ela pode, face a tudo o resto, ser a via mais digna.

Três perspectivas sobre a morte. No fundo, três perspectivas sobre a vida.

Porque a primeira deriva da segunda e ambas apenas se definem em pleno contraponto.

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