Cientistas decifram como as interações neuroimunes queimam gordura visceral

19 de Agosto 2021

Um estudo pioneiro, feito em ratinhos, revela novas alternativas terapêuticas para reduzir as reservas de gordura visceral, que têm sido associadas a doenças cardiovasculares e vários tipos de cancro.

Os resultados do estudo, realizado em ratinhos e publicado hoje na revista Nature, apresentam o primeiro processo neuro-imune conhecido, através do qual sinais cerebrais comandam a função imunológica nos depósitos de gordura visceral. Esta descoberta oferece novas abordagens ao combate à obesidade e às doenças a ela associadas.

Existe uma relação entre a obesidade e pelo menos 13 tipos de cancro, incluindo dois dos mais prevalentes (cancro da mama e cancro colorretal), bem como doenças cardiovasculares, que continuam a ser uma das principais causas de morte em todo o mundo.

O tipo mais prejudicial de obesidade é causado pela acumulação excessiva da gordura “profunda”. Ao contrário dos depósitos de gordura localizados diretamente sob a pele, os depósitos de gordura “profunda” ou visceral encontram-se dentro da cavidade abdominal, envolvendo órgãos vitais. Em quantidades normais, a gordura visceral é útil para o desempenho de várias funções fundamentais, como a reprodução. No entanto, quando é em excesso, produz níveis prejudiciais de proteínas e hormonas que afetam negativamente os tecidos e órgãos próximos.

“O excesso de gordura visceral para além de muito perigoso é também muito difícil de eliminar”, explica Henrique Veiga-Fernandes, investigador principal e codirector da Champalimaud Research, em Portugal. “Neste projeto, a nossa equipa propôs-se a explorar os mecanismos que o reduzem naturalmente, na expectativa de descobrir potenciais aplicações clínicas.”

A gordura visceral pode aparentar ser uma massa amarela uniforme, mas na verdade é um tecido complexo e heterogéneo. Para além das células de gordura, contém também fibras nervosas e muitos tipos de células diferentes, incluindo células do sistema imunológico. A equipa estava particularmente interessada num tipo específico de células imunes chamadas ILC2 (células linfoides inatas do tipo 2).

“As ILC2 são essenciais a várias funções imunológicas, em muitos tecidos e órgãos, incluindo a manutenção do bem-estar geral do tecido adiposo. No entanto, até aqui, não sabíamos que células controlavam as ILC2 na gordura visceral ou quais as mensagens moleculares que utilizavam para comunicar entre si”, diz Ana Filipa Cardoso, primeira autora do estudo.

Resultados anteriores do laboratório revelaram que, no pulmão, é o sistema nervoso que controla diretamente a atividade das ILC2 e, por isso, a equipa esperava encontrar aqui um mecanismo semelhante. No entanto, descobriu algo completamente diferente. “Os neurónios e as células do sistema imunológico não comunicavam”, lembra Cardoso. “Então, ao investigar outros candidatos no tecido, encontrámos finalmente um ‘intermediário’ bastante inesperado.”

Aquele que se descobriu agora ser o mediador crítico da comunicação neuroimune na gordura visceral era, até recentemente, considerado apenas um mero espectador. “As células mesenquimais (MSC, na sigla inglesa) foram amplamente ignoradas até há cerca de uma a duas décadas”, refere Veiga-Fernandes. “A opinião generalizada era que estas, essencialmente, produziam a estrutura do tecido sobre a qual outras células depois ‘trabalhavam’. No entanto, os cientistas descobriram que as MSC desempenham várias funções ativas essenciais.”

Os investigadores identificaram a cadeia de comando e as mensagens moleculares que são trocadas em cada etapa. “Começa com sinais neuronais para as MSC. Estas enviam depois uma mensagem para as ILC2, à qual estas últimas respondem ordenando que as células de gordura acelerem o seu metabolismo”, resume Cardoso.

“É como se as células neuronais e imunológicas não falassem a mesma língua e as MSC fossem o seu intérprete”, acrescenta Veiga-Fernandes. “Se olharmos para o ambiente macro, faz sentido. As MSC são efetivamente o ‘ecossistema’ do tecido e, portanto, estão na posição ideal para ajustar a atividade de outras células.”

Uma vez identificado o circuito local para o processo de queima de gordura, os cientistas deram um passo atrás para questionar o que, à partida, desencadeia a atividade neural nos depósitos de gordura visceral.

“As fibras nervosas dentro da gordura visceral pertencem ao chamado sistema nervoso periférico. Este é responsável por vários processos fisiológicos, como a regulação da pressão arterial”, explica Cardoso. “Mas o sistema nervoso periférico não é quem manda, apenas obedece ao sistema nervoso central, ao qual o cérebro pertence. Então, a pergunta que fizemos a seguir foi ‘qual é a estrutura do cérebro que está no topo da cadeia de comando?'”

A equipa identificou uma região, dentro do hipotálamo (chamada PVH – Núcleo paraventricular do hipotálamo), como a origem. Esta estrutura, situada perto da base do cérebro, é o centro de controlo de um conjunto diversificado de processos que vão do metabolismo à reprodução e às funções gastrointestinais e cardiovasculares.

“Esta descoberta é muito significativa”, afirma Veiga-Fernandes. “É o primeiro exemplo claro de um circuito neuronal cruzado que traduz as informações do cérebro numa função imunológica relacionada com a obesidade. E também levanta muitas outras questões. Por exemplo, o que leva o PVH a emitir a ordem para ‘queimar gordura’? Está relacionado com o comportamento, como comer certos alimentos ou fazer exercício? Ou depende de sinais metabólicos internos? Ou ambos? É uma tela em branco – não sabemos o que é, e isso é fascinante.”

Estes resultados, na opinião da equipa, apresentam várias abordagens potenciais para a manipulação do processo de queima de gordura visceral. “Este novo eixo de regulação, marcado por etapas, que identificámos agora, revela muitos pontos de acesso ao metabolismo da gordura visceral. Agora podemos começar a pensar em formas de usar este novo conhecimento para combater a obesidade visceral e, assim, reduzir o risco de doenças cardiovasculares e cancro”, salienta Cardoso.

Veiga-Fernandes acrescenta que vários esforços nesse sentido já estão em curso. “Isto é algo que estamos ativamente à procura. Não no laboratório, que continua a concentrar-se em questões de investigação fundamentais, mas no contexto de uma startup chamada LiMM Therapeutics (https://www.limmtx.com/), sediada aqui, no Centro Champalimaud.”

​​”O mais desafiante num projeto desta natureza é que estamos realmente a trabalhar numa fronteira. Já não é imunologia mas também não é neurociência. Temos de dominar tecnologia, métodos e abordagens que são interdisciplinares ou multidisciplinares. Alguns deles não existem mesmo havendo a necessidade de os desenvolver do zero. Mas, ao mesmo tempo, o desafio conceptual é muito estimulante; estamos mesmo a aventurar-nos no desconhecido”, conclui Veiga-Fernandes.

Link para o paper: https://www.nature.com/articles/s41586-021-03830-7.

PR/HN/Rita Antunes

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