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Um dia… (como Médica de Família)
Logo cedo, a Marta e o João, procuraram-me. O choro intenso da pequena Alice, denunciava uma noite mal dormida e um cansaço generalizado. Só chora! Dizia a mãe. Sem febre, não come e pede água. Desde ontem, ao fim do dia, chora sem parar, grita mesmo. Refugiada nos braços do pai, também exausta, Alice olhava em redor tentando adivinhar o passo seguinte. Vamos observá-la, então. Os meus movimentos, coreografados pela prática, procuravam sinais escondidos, que pudessem indicar um caminho para tranquilizar a família. Sem qualquer dúvida, uma otite, disse eu. Sem febre, perguntaram eles. E lá foram, depois de várias perguntas e dúvidas respondidas.
Durante os exames globais de saúde, porque são convocados, aparecem sempre caras novas, habitualmente frequentadores de cuidados privados. Era o caso de Maria. Cinco anos, tímida, mas curiosa, fixou o olhar nos livros, colocados na beira da marquesa. Podes ler. Com os pais falava de alimentação. Disse que a água era a bebida de eleição. Olharam-se, e após um silêncio cronometrado, ‘nós damos-lhe um sumo açucarado de fruta, a todas as refeições, faz mal?’ Faz, e enquanto o justificava, percebi que aquele sumo representava a ascensão social e económica conquistada e seria difícil abdicar dele.
Na consulta de ‘planeamento familiar’, ao falar de ‘pílulas’ a uma jovem adulta, fui novamente surpreendida pelo desconhecimento que tinha sobre o funcionamento do seu corpo. Como é possível?! Mesmo com a escolaridade obrigatória, enredam-se nos mitos que proliferam sobre o tema e quando chego com a abordagem científica, é de mim que duvidam!
A D. Natália, quando vem à consulta, parece estar sempre zangada. Fala, sem olhar nos olhos do outro, eleva o tom de voz e parece que dita ordens. Quer venha sozinha ou acompanhada pelo marido. A consulta acaba por se desenrolar, mas para mim é cansativo. Resolvi perguntar. Porque está zangada? E com quem? É comigo? Admirada, susteve a respiração, elevou os sobrolhos, pigarreou e começou a chorar copiosamente. Explicou-me a sua tristeza, há muitos anos, desde que a mãe morreu. Viveu durante algum tempo com os avós maternos, mas depois com a ida para a escola primária, foi uma tia que tomou conta dela. Ao sentimento de abandono, juntaram-se a fome, as humilhações, os maus tratos físicos e psicológicos. Nunca tive ninguém que gostasse de mim.
O senhor António, fala pouco. Mesmo quando vem, regularmente, mostrar as análises por causa de diabetes e do colesterol elevado, como ele diz. Hoje, na região inguinal direita, tem uma dor fixa e sente um calor. Depois de conferir a lista de problemas e de uma curta observação, digo-lhe que deve procurar o serviço de urgência, com a respetiva referência, agora, não amanhã. Hesita, duvida, questiona, tenta ganhar tempo. Tem a certeza? Saiu, não convencido.
A Alexandra, divorciada há pouco tempo, passa parte do tempo em Oxford, onde as suas filhas residem. A mais velha, foi a primeira a ir, conta-me, por causa do doutoramento. Tem a ver com matemática. A mais nova, enfermeira, foi depois. Trabalha num hospital geriátrico particular, gostam muito dela. Estão bem, garante-me. O Natal passado, foi muito bonito, tudo com neve. Mas as casas são quentes, não é como cá. Até nessa altura tinha os suores. Era a queixa que apresentava. A escorrer pelas costas abaixo, nas palmas das mãos, sem aviso, fizesse calor ou frio. Ficava envergonhada se tivesse que cumprimentar alguém. De momento, não tenho solução, vou pedir ajuda.
A Rosa nunca falou sobre o assunto. O marido vinha sempre sozinho. Não lhe conhecia outros defeitos de caracter, para além de ser manipulador. Avisaram-me que estava um em cada sala, com ferimentos, depois de mais um episódio de violência doméstica. Tive que pensar. Terei que escolher entre «vítima» e «agressor»? Tenho responsabilidades perante os dois. Vamos lá.
O Afonso esteve na Guiné, durante a guerra. Já não vive com a família, depois de muitas dívidas e problemas legais. Cansaram-se, diz. O diagnóstico de stress pós-traumático é recente. Revolta-se. Os novos medicamentos só aliviam. Continua a ouvir os tiros, os gritos e a ver os amigos mortos, durante as noites. Vem pedir nova receita e agradecer o contacto com a Liga dos Combatentes. Desconhecia que havia outros com o mesmo problema.
A D. Adelina tem 86 anos, é viúva e tem medo de morrer. Uma das bisnetas teve um bebé este ano. Tem uma hipertensão ligeira e bem controlada, sem outras complicações. Tem que auscultar-me o coração, tenho que ver crescer o meu menino, ameaça-me com um suspiro.
No meio dos exames para analisar, destaca-se uma TAC abdominal. É do senhor Luís, que um dia chegou preocupado com uma dor fixa na barriga. Alterações do trânsito abdominal e uma ligeira anemia ferropénica. Para mim é o pior, dar notícias más. Por mais que treine em frente ao espelho, tenho sempre medo de falhar, de não conseguir ser profissional.
Quase de saída, pedem-me para ver alguém que se cortou. Uma distração na cozinha e um corte na palma da mão, superficial e longo. Preparo-me para suturar.
Amanhã, na reunião de serviço, vou apresentar um caso clínico. Sobre uma adolescente que se auto mutilava.
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