Isabel Galriça Neto Médica; Directora da UCPaliativos Hospital da Luz-Lisboa Ex-deputada

Estou menos confinada, e agora?

05/05/2020

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Estou menos confinada, e agora?

05/05/2020 | Opinião

Escrever estas breves linhas é uma nova oportunidade de olhar mais profundamente para estas últimas semanas de excepcionalidade que vivemos.

No meu caso, mantendo-me a trabalhar no meu Hospital e na Unidade de Cuidados Continuados e Paliativos que dirijo, foi um confinamento “parcial”.

No trabalho, fomos confrontados com um stress mantido, em que a adaptação ao novo e desconhecido se impôs, em que novas formas de organização de trabalho surgiram, as relações com colegas, doentes e famílias se alteraram, em que as equipas foram postas à prova, em condições tantas vezes precárias ou deficitárias no SNS. 

E resiliência – ir para além das dificuldades, abraçá-las e reconstruir-se – foi uma expressão que ganhou forma, que se pôde observar todos os dias no serviço aos mais vulneráveis. Que orgulho ser profissional de saúde, ser Médica, também neste momento.

No meio de tanta dor e sofrimento, de tanta dureza, inevitavelmente destacam-se exemplos de Grandeza, de Coragem, de Entrega, de Compaixão. Valores que prezamos e que, aparentemente, em tempos de acalmia são menos falados e enobrecidos. No meio desta calamidade– como na vida -, podemos fazer uma opção séria: onde queremos pôr o nosso foco, o que queremos destacar e iluminar? No meio desta crise pandémica estamos obrigados a trazer Luz à vida dos que foram mais duramente atingidos e não podemos esquecer aqueles que, através do serviço ao Outro, se eleveram e elevaram toda uma sociedade com eles.

Dizer isto não significa branquear a desgraça económica, tapar o desemprego e a pobreza que dispararam, ocultar os já mais de 1000 mortos por Covid que atingimos, o luto penoso e duro dos seus familiares. Significa olhar nos olhos a realidade que nos tocou viver e buscar soluções – novas, diferentes – se queremos chegar a novos patamares de desenvolvimento e resultados distintos.

No meio destas incertezas, desta travessia do desconhecido – como poderemos olhar para a frente?

Na Sociedade, claramente com muita responsabilidade e ponderação. Não, “isto não acabou”, há elevados riscos que se mantêm, e não podemos deixar que o “nacional porreirismo” triunfe e imponha a ideia de que podemos voltar ao “como era dantes”. Esta crise não é uma corrida de 100 metros, é uma intensa corrida de fundo, uma maratona tão ou mais exigente que aquelas que os desportistas correm. Vale a pena unirmo-nos e ter foco nas acções, mas precisamos de lideranças sérias, responsáveis e capazes. Para concertar os estragos deixados, para reerguer uma sociedade com feridas profundas, que a todos nos ferem.

Na Medicina, e depois do sofrimento que foi posto a nu, das insuficiencias que se acentuaram, precisamos seguramente de mais humanização, não esquecendo o papel da intervenção rigorosa e do acompanhamento das pessoas com sofrimento decorrente de doenças graves (como o Covid e outros que se lhe poderão seguir) que os Cuidados Paliativos representam. Infelizmente, continuam a tardar no nosso país, por mitos e preconceitos, mas também por falta de acesso, e exige-se que sejam olhados na visão mais moderna e consistente, como cuidados de saúde competentes que se estendem muito para além da terminalidade e podem ser profundamente transformadores das realidades de sofrimento nas doenças, qualquer que seja a fase da mesma.

Na Saúde, ter visão estratégica, ter rumo, não vaguear ao sabor das ideologias, aprender claramente, como sempre dissémos, que os problemas dos portugueses resolvem-se num sistema de saúde de base alargada, com menos ideologia, e com mais pragmatismo e qualidade. Os meios são escassos, os profissionais estão desgastados. Sector público, social e privado terão forçosamente que se articular harmoniosamente – mais uma vez, a importancia das lideranças…- e cooperar activamente para o Bem Comum.

Na vida de cada um, quando estivermos menos mal, não convém deixar o Essencial para trás e guardar muito bons ensinamentos que as contrariedades sempre nos trazem: somos vulneráveis, não controlamos tudo, precisamos uns dos outros, somos verdadeiramente Uns para os Outros. Esta é uma bagagem que não podemos deixar para trás. Precisamos de relativamente pouco para viver bem e ser felizes – e elejo os abraços como imprescindíveis!! – e seguramente, se formos menos consumistas, mais solidários e mais reflexivos, construiremos um colectivo mais próspero e mais feliz.

Então e agora? Não sei se vai ficar tudo bem, sei seguramente que gostaria que muita coisa ficasse diferente.

 

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