António Alvim Médico especialista em MGF

A Constitucionalidade do Seguro Social de Saúde

06/02/2020

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A Constitucionalidade do Seguro Social de Saúde

02/06/2020 | Opinião | 1 comment

No artigo anterior expliquei o  Seguro Social de Saúde e a sua importância como peça chave para um novo SNS conforme a proposta de Reforma da Saúde feita.

Sabendo que o que se propôs terá do pensamento conservador social estatista dominante, e dos interesses corporativos, um fortíssimo combate importa ter presente a Questão Constitucional que certamente será usada como arma de combate político, sobretudo quando há uma série de mistificações acerca deste tema. Hoje irei demonstrar a Constitucionalidade da proposta do novo modelo de financiamento assente o Seguro Social de Saúde, que será um Seguro Público, sem fins lucrativos.

 

Ora a Constituição sobre a saúde diz:

 

Artigo 64.º

Saúde

  1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.
  2. O direito à proteção da saúde é realizado:
  3. a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;
  4. b) Pela criação de condições económicas, sociais, culturais e ambientais que garantam, designadamente, a proteção da infância, da juventude e da velhice, e pela melhoria sistemática das condições de vida e de trabalho, bem como pela promoção da cultura física e desportiva, escolar e popular, e ainda pelo desenvolvimento da educação sanitária do povo e de práticas de vida saudável.
  5. Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:
  6. a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
  7. b) Garantir uma racional e eficiente cobertura de todo o país em recursos humanos e unidades de saúde;
  8. c) Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
  9. d) Disciplinar e fiscalizar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde, por forma a assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas, adequados padrões de eficiência e de qualidade;
  10. e) Disciplinar e controlar a produção, a distribuição, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico;
  11. f) Estabelecer políticas de prevenção e tratamento da toxicodependência.
  12. O serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada.

Em nenhum ponto nos diz que o financiamento da prestação de cuidados de saúde  tem de ser assente no Orçamento de Estado.

Diz no nr. 2

  1. a) Através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito;

e no nr 3

  1. a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
  2. c) Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;

Assim o que a Constituição garante é que  deve haver um Serviço Nacional de Saúde Universal e Geral (para todos e prestando todos os cuidados de saúde) e que o acesso aos cuidados de saúde, ou seja, quando se precisam de cuidados de saúde, seja gratuito (ou tendencialmente gratuito e tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos). Aquilo que a Constituição defende é o direito de todos ao acesso aos Cuidados de Saúde, sem entraves económicos ou financeiros no momento do acesso. E quando fala em socialização dos custos e em tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito está a dizer que quer um modelo mutualista e que se aceita como bom que quem tem mais pagará mais para o bolo de onde sairá o pagamento às Unidades Prestadoras de Cuidados de Saúde e quem tem menos, pagará menos ou nada.

Ora se a via do Orçamento de Estado é uma via possível para realizar a Constituição, a via do Seguro Social de Saúde Universal, em que o Estado, via OE, apoia no pagamento das prestações para o SSS os cidadãos na função inversa das suas capacidades económicas também o é. A via OE resulta apenas de uma opção governativa e não da Constituição.

Aliás existem dos acordos do Tribunal Constitucional, que fazem jurisprudência quer na filosofia geral do financiamento da Saúde quer no esclarecimento da questão sobre àquilo a que se aplica  o principio da gratuitidade : Se ao financiamento geral do SNS ou se ao momento de acesso aos cuidados de Saúde, sendo a resposta clara que o que está  em causa é a gratuitidade no momento em que se precisa de cuidados e se utiliza o SNS.

E também é claro em deixar para o legislador o Modelo e a forma de organizar e financiar o SNS.

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Acordão 731/95

 

 

http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19950731.html

 

 

II — Fundamentos

 

4 — Natureza do direito à protecção da saúde.

O artigo, 64.º, n.º 1, da Constituição proclama que «todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover».  Por sua vez, a alínea a) do n.º 2 do mesmo preceito determina que «o direito à protecção da saúde é realizado através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito».

Nos termos do n.º 3 do artigo 64.º da Constituição, «para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado:

 

  1. a)Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação;
  2. b)Garantir uma racional e eficiente cobertura médica e hospitalar de todo o país;
  3. c)Orientar a sua acção para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos;
  4. d)Disciplinar e controlar as formas empresariais e privadas da medicina, articulando-as com o serviço nacional de saúde;
  5. e)Disciplinar e controlar a produção, a comercialização e o uso dos produtos químicos, biológicos e farmacêuticos e outros meios de tratamento e diagnóstico.

 

Finalmente, de harmonia com o n.º 4 do artigo 64.º da Lei Fundamental, «o serviço nacional de saúde tem gestão descentralizada e participada».

Antes de se confrontarem as normas objecto do pedido com os preceitos constitucionais que constituem o seu parâmetro de validade, importa, preliminarmente, deixar uma nota sobre a natureza do direito à saúde.

O direito à protecção da saúde, consagrado no Título III, Capítulo II, da Constituição, não é, como acentuou este Tribunal nos seus Acórdãos n.os 39/84 e 330/89 (publicados no Diário da República, I Série, n.º 104, de 5 de Maio de 1984, e II Série, n.º 141, de 22 de Junho de 1989, respectivamente), um dos «direitos, liberdades e garantias», previstos no Título II da Parte I da Constituição, nem um direito de natureza análoga a estes, para efeitos de sujeição ao mesmo regime jurídico, nos termos do disposto no artigo 17.º da Lei Fundamental É antes, um direito social típico e, enquanto tal, configura-se como um direito a acções ou prestações do Estado, de natureza jurídica (medidas legislativas), de carácter material (bens e serviços) e de índole financeira, necessárias à respectiva satisfação.  Assim, ao contrário dos «direitos, liberdades e garantias», cujo âmbito e conteúdo são essencialmente determinados ao nível das opções constitucionais, e, por isso, são directamente aplicáveis, (cfr. o artigo 18.º, n.º 1, da Constituição), o direito à protecção da saúde, como direito social, está dependente de uma «interposição legislativa», isto é, de uma actividade mediadora e subsequente do legislador, com vista à criação dos pressupostos materiais indispensáveis ao seu exercício efectivo.  Esta característica, que é comum à generalidade dos direitos económicos, sociais e culturais, põe com acuidade o problema da efectivação do direito à saúde.  Fala-se aqui de uma efectivação «sob reserva do possível», para significar a sua dependência dos recursos económicos existentes (cfr., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., Coimbra, Almedina, 1993, pp. 667-668, e J. C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1987, p. 201).

A produção de uma tal normação «secundária», concretizadora dos direitos sociais (e agora, em particular, do direito à protecção da saúde), não é, porém, algo que a Constituição deixe à livre iniciativa (à plena liberdade) do legislador: representa para este um verdadeiro «dever» ou «obrigação» — obrigação que, por isso, leva a doutrina portuguesa, generalizadamente, a qualificar as normas constitucionais relativas aos direitos sociais como «normas impositivas de legislação» (cfr. o citado Acórdão n.º 330/89 e ainda: Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 345; J. J. Gomes Canotilho, ob. e loc. cits.; e J. C. Vieira de Andrade, ob. cit., p. 206).  No cumprimento desta obrigação constitucional, goza o legislador, em princípio, de uma mais ou menos ampla «liberdade constitutiva», quer quanto às concretas soluções normativas a adoptar (eventualmente, quanto à escolha, mesmo, do «modelo» organizatório-normativo a seguir), quer quanto ao próprio quando e ritmo da legislação.  Mas, quando a Constituição traçar indicações mais ou menos claras e precisas, do sentido que aquelas soluções deverão assumir, não poderá o legislador, ao intervir, deixar de respeitá-las e acatá-las, sob pena de inconstitucionalidade (cfr. o mencionado Acórdão n.º 330/89).

 

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Resumo do acordão n.º 330/89

http://www.dgsi.pt/atco1.nsf/904714e45043f49b802565fa004a5fd7/d9ff6a7cf73d2e8d8025682d00648842?OpenDocument&Highlight=0,taxa,moderadora

V – O direito a saúde, enquanto um dos “direitos sociais” do catalogo constitucional, é um direito cuja precisa dimensão esta dependente de uma intervenção subsequente do legislador que a concretize (isto e, que venha definir as concretas faculdades que integram o direito e os concretos meios postos para a respetiva satisfação) e, assim, viabilize efetiva e praticamente a possibilidade do exercício do mesmo direito.
VI – A produção de uma tal normação “secundaria” representa para o legislador um verdadeiro “dever” no cumprimento do qual deve respeitar as indicações que a Constituição der do que deverão assumir as concretas soluções normativas a adotar.
VII – O conceito de “gratuitidade” do serviço nacional de saúde, ao ser assumido pela Constituição, ganha uma conotação “normativa” (lato sensu), perdendo a “determinação” absoluta de que aparentemente se revestia e visando, essencialmente, garantir aos utentes desse serviço que não terão eles de suportar individualizadamente os custos das respetivas prestações.
VIII – Tomado o conceito de “gratuitidade” no sentido exposto no numero anterior, com ele é compatível a exigência aos utentes do Serviço Nacional de Saúde de “taxas moderadoras”, como as previstas no diploma em analise, que visam tão só racionalizar a utilização das prestações facultadas pelo serviço em causa.
IX – Tendo o legislador parlamentar podido legitimamente incluir entre as bases do Serviço Nacional de Saúde a da exigibilidade de taxas moderadoras, legitimado estava também o Governo para, no Decreto-Lei n. 57/86, proceder ao estabelecimento efetivo dessas mesmas taxas desde que, ao faze-lo, não “subverteu”, o conteúdo mínimo de gratuitidade a que atras se aludiu, ou não pusesse em causa, como não pôs, os princípios da “universalidade” e “generalidade” que, segundo o artigo 64 n. 2 da Constituição devem igualmente enformar o mesmo serviço.
X – O encurtamento da extensão do principio da exigência das taxas moderadoras por legislação posterior ao decreto-lei impugnado redobra de ponto as razões aduzidas por ultimo, ao numero anterior.

 

 

Complementarmente faz-se notar que até à data ninguém viu inconstitucionalidade no Estatuto do SNS onde,  desde de 1993, se consagra no seu artigo 24º a possibilidade de o acesso à Saúde ser feito por seguros alternativos (privados) e no 25º a possibilidade dos encargos com a saúde serem transferidos para terceiros. (privados), o que vai muito além do que se propõe: um seguro social de saúde público sem fins lucrativos.

 

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Estatuto do SNS

Artigo 24.º

Seguro alternativo de saúde

1 – Podem ser celebrados contratos de seguro por força dos quais as entidades seguradoras assumam, no todo ou em parte, a responsabilidade pela prestação de cuidados de saúde aos beneficiários do SNS.
2 – Os contratos a que se refere o número anterior não podem, em caso algum, restringir o direito de acesso aos cuidados de saúde e devem salvaguardar o direito de opção dos beneficiários, podendo, todavia, responsabilizá-los, de acordo com critérios a definir.
3 – O regime de seguros a que se refere o presente artigo é definido em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Saúde.

 

Artigo 25.º

Preços dos cuidados de saúde
3 – O Instituto de Gestão Informática e Financeira da Saúde (IGIF) pode celebrar acordos, de âmbito nacional, com as entidades responsáveis pelo pagamento das prestações de saúde, relativos a tabelas de preços e a pagamentos.
5 – As instituições e serviços integrados no Serviço Nacional de Saúde podem ainda celebrar acordos de pagamentos com as entidades responsáveis pelos encargos relativos à prestação de cuidados de saúde, de acordo com critérios a fixar por despacho do Ministro da Saúde.
6 – A responsabilidade por encargos relativos a prestações de saúde pode ser transferida para entidades públicas ou privadas, mediante uma comparticipação financeira a estabelecer em protocolo com o IGIF, nos termos e montantes a definir em portaria do Ministro da Saúde.

 

 

E finalmente ambos os Acordãos acima citados falam no dever constitucional do poder político legislar e desencadear as ações necessárias para

  1. a)   Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação

 

O que se antes do COVID já estava em causa com atrasos nas consultas e cirurgias muito para além do tempo máximo de espera garantindo, pior será no futuro se medidas de fundo não forem tomadas de forma a adequar o financimento da Saúde ás reais necessidades, cujo crescimento é superior ao crescimento daquilo que o OE pode dar para a Saúde.

 

Ou seja, a Reforma proposta, assente num Seguro Social de Saúde, público e sem fins lucrativos,  fianciador dos Serviços de Saúde prestados pelas Unidades do Serviço Nacional de Sáude,  pelas razões da importância deste para Reforma da Saúde, explicadas no artigo anterior,  é um dever constitucional !

 

 

Hoje demonstrei a constitucionalidade do modelo de financiamento proposto. No  próximo artigo explicarei a Constitucionalidade dos restantes aspectos da Reforma da Saúde proposta.

 

1 Comment

  1. Jorge Barata

    Parece-me que o problema não é efectivamente a Constituição em vigor, já que a proposta pretende que se mantenha um Serviço de Saúde com acesso para TODOS e tendencialmente gratuito.
    No Sistema existente a escolha do médico, pelo utente/doente, foi sempre uma mera declaração de intenção, porque nunca viável. Além do mais ter um Médico de Família tornou-se quase num ganhar uma lotaria.
    Lamento dizê-lo, mas a dita Reforma dos Cuidados de Saúde Primários agravou todo o quadro existente. Criou utentes de 1ª ( os das USFs modelo B), utentes de 2ª ( os das USFs modelo A) e de 3ª( os utentes das UCSPs). Também criou um modelo de pagamento injusto para os profissionais, baseado em pressupostos muito discutíveis e discriminatórios.
    Torno a insistir que, enquanto se pensa e pondera uma real e fundamentada reforma do modelo do actual SNS, pode-se de imediato aliviara pressão sobre esse SNS, permitindo que qualquer Médico ( reconhecido pela OM e pelo Estado) possa solicitar MCDs ( Meios Complementares de Diagnóstico), à semelhança da possibilidade de prescrição de receituário comparticipado. Mesmo que os exames com comparticipação do Estado sejam apenas os mesmos que se permite actualmente aos profissionais da Medicina Geral / Medicina de Família. É totalmente um absurdo e não sei se mesmo anti-constitucional, não permitir que qualquer Médico, em pleno direito de exercício, não possa solicitar os meios complementares de diagnóstico. O mesmo raciocínio para os CITs ( Certificados de Incapacidade Temporária). Um Médico é reconhecido como tal, mas depois limitam-lhe a actividade e competência ? E isto não fere o princípio da livre concorrência?
    Estas resoluções que advogo de imediato melhorariam a capacidade de resposta do SNS e facilitariam a vida aos utentes/doentes. Todo aquele que não tem Médico de Família ( e até será um Direito de Liberdade Individual não querer um Médico de Família e a obrigação de consultas e exames periódicos) vê-se numa situação muito complexa quando necessita dum CIT.
    Melhores Cumprimentos.

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