Confirmada ligação entre doença de Alzheimer e microbiota intestinal

19 de Novembro 2020

A doença de Alzheimer é a causa mais comum de demência. Ainda incurável, afeta diretamente quase um milhão de pessoas na Europa, e indiretamente milhões de membros das famílias, bem como a sociedade no seu conjunto.

Desde há vários anos, a comunidade científica suspeitava que a microbiota intestinal desempenha um papel no desenvolvimento da doença. Uma equipa da Universidade de Genebra (UNIGE) e dos Hospitais Universitários de Genebra (HUG), na Suíça, com colegas italianos do National Research and Care Center for Alzheimer and Psychiatric Diseases Fatebenefratelli em Brescia, da Universidade de Nápoles e do  IRCCS SDN Research Center, em Nápoles, confirmou a correlação, nos seres humanos, entre um desequilíbrio na microbiota intestinal e o desenvolvimento de placas amilóides no cérebro, que estão na origem das perturbações neurodegenerativas características da doença de Alzheimer.

As proteínas produzidas por certas bactérias intestinais, identificadas no sangue dos pacientes, poderiam de facto modificar a interação entre o sistema imunitário e o sistema nervoso e desencadear a doença. Estes resultados, publicados no Journal of Alzheimer’s Disease, tornam possível prever novas estratégias preventivas baseadas na modulação da microbiota das pessoas em risco.

O laboratório de investigação do neurologista Giovanni Frisoni, diretor do HUG Memory Centre  e professor no Departamento de Reabilitação e Geriatria da Faculdade de Medicina da UNIGE, trabalha há vários anos sobre a potencial influência da microbiota intestinal no cérebro, e mais particularmente nas doenças neurodegenerativas.

“Já demonstrámos que a composição da microbiota intestinal em doentes de Alzheimer foi alterada, em comparação com pessoas que não sofrem de tais perturbações”, explica. “A sua microbiota tem, de facto, uma diversidade microbiana reduzida, com uma sobrerrepresentação de certas bactérias e uma forte diminuição de outros micróbios”.

“Além disso, descobrimos também uma associação entre um fenómeno inflamatório detetado no sangue, certas bactérias intestinais e a doença de Alzheimer. Daí a hipótese que queríamos testar: poderia a inflamação no sangue ser um mediador entre a microbiota e o cérebro?”

As bactérias intestinais podem influenciar o funcionamento do cérebro e promover a neurodegeneração através de várias vias: podem influenciar a regulação do sistema imunitário e, consequentemente, modificar a interação entre o sistema imunitário e o sistema nervoso.

Lipopolissacáridos, uma proteína localizada na membrana de bactérias com propriedades pró-inflamatórias, foram encontrados em placas amilóides e em torno dos vasos, no cérebro de pessoas com doença de Alzheimer.

Além disso, a microbiota intestinal produz metabolitos – em particular, alguns ácidos gordos de cadeia curta – que tendo propriedades neuroprotetoras e anti-inflamatórias, afetam direta ou indiretamente a função cerebral.

“Para determinar se os mediadores da inflamação e os metabolitos bacterianos constituem uma ligação entre a microbiota intestinal e a patologia amilóide na doença de Alzheimer, estudámos uma coorte de 89 pessoas entre os 65 e 85 anos de idade. Algumas sofriam da doença de Alzheimer ou de outras doenças neurodegenerativas que causam problemas de memória semelhantes, enquanto outras não tinham quaisquer problemas de memória”, relata Moira Marizzoni, investigadora do Centro Fatebenefratelli em Brescia e autora principal deste trabalho. “Utilizando imagens PET, medimos o depósito amilóide e depois quantificámos a presença no sangue de vários marcadores de inflamação e proteínas produzidas por bactérias intestinais, tais como lipopolissacáridos e ácidos gordos de cadeia curta”.

“Os nossos resultados são incontestáveis: certos produtos bacterianos da microbiota intestinal estão correlacionados com a quantidade de placas amilóides no cérebro”, explica Moira Marizzoni. “De facto, níveis sanguíneos elevados de lipopolissacarídeos e certos ácidos gordos de cadeia curta (acetato e valerato) foram associados a grandes depósitos amilóides no cérebro. Inversamente, níveis elevados de outro ácido gordo de cadeia curta, o butirato, foram associados a uma patologia menos amilóide”.

Este trabalho fornece, assim, a prova de uma associação entre certas proteínas da microbiota intestinal e amiloidose cerebral, através de um fenómeno inflamatório do sangue. Os cientistas vão agora trabalhar para identificar bactérias específicas, ou um grupo de bactérias, envolvidas neste fenómeno.

Esta descoberta abre caminho a potenciais estratégias de proteção altamente inovadoras – através da administração de um cocktail bacteriano, por exemplo, ou de prebióticos para alimentar as bactérias “boas” do nosso intestino.

“Contudo, não devemos ter pressa em celebrar”, diz Frisoni. “Devemos primeiro identificar as estirpes do cocktail. Além disso, um efeito neuroprotetor só poderia ser eficaz numa fase muito precoce da doença, com vista à prevenção. Mas o diagnóstico precoce é ainda um dos principais desafios na gestão das doenças neurodegenerativas, uma vez que devem ser desenvolvidos protocolos para identificar indivíduos de alto risco e tratá-los muito antes do aparecimento de sintomas detetáveis”.

Este estudo faz parte de um plano de prevenção mais amplo, liderado pela Faculdade de Medicina da UNIGE e pelo HUG Memory Centre.

NH/AG/HN/Adelaide Oliveira

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