Entrevista a Diogo Medina sobre o Programa FOCUS: “Continuámos a fazer diagnósticos de VIH e hepatite mesmo durante a pandemia”

12/22/2020
O Programa FOCUS é o maior programa de rastreios alguma vez feito em Portugal, tendo rastreado 100 mil pessoas em dois anos e meio de atividade. Desenvolvido  pela Gilead Sciences, o FOCUS ajuda unidades de saúde existentes a melhorarem os seus programas de rastreio através dos “testes oportunistas” que, apesar de serem sugeridos à generalidade das pessoas, conseguem uma adesão superior a 90%.

Diogo Medina, médico perito em saúde pública e responsável pelo programa FOCUS a nível ibérico falou à HealthNews sobre a importância do rastreio, os desafios de fazer um teste de VIH a pessoas fora dos grupos de risco e a reflexão do programa nos grupos mais afetados por estas doenças, entre eles os migrantes, bem como do impacto da pandemia de Covid-19 na realização destes rastreios.

 HealthNews – Uma em cada duas pessoas na União Europeia é diagnosticada tardiamente para o VIH, uma situação particularmente preocupante para as populações migrantes e heterossexuais, mas porquê estas pessoas?
Diogo Medina – Em relação aos heterossexuais tem muito que ver com um certo viés que existe em relação à sua própria perceção de risco. A maior parte das pessoas tem um risco superior ao que acredita. Nesse sentido basta ver a adesão ao uso de preservativo entre casais heterossexuais que é inferior ao uso entre casais homossexuais, uma vez que com o uso da pílula o preservativo nem é sequer uma preocupação.

Por outro lado, em relação à procura de testes de rastreio, esta é muito menos frequente por pessoas heterossexuais do que por pessoas homossexuais, que já têm noção do que [os testes] são e têm ouvido falar mais destes vírus, pelo que procuram com mais frequência a realização destes testes.

É por isso que entre homossexuais o diagnóstico tardio é menos frequente. É um diagnóstico mais precoce porque como se testam com mais frequência é mais fácil detetar uma infeção.

Em relação aos migrantes, a razão prende-se com o acesso aos cuidados de saúde. Em Portugal e Espanha, bem como na maior parte dos países europeus, felizmente o sistema de saúde é universal e cobre até os migrantes sem documentação. No nosso caso, existe uma lei específica que permite os cuidados em relação ao VIH a estas pessoas, mas existe pouca literacia entre as pessoas que chegaram ao nosso país há pouco tempo, e se um português já tem dificuldade em navegar no nosso sistema de saúde, então imagine-se um migrante. Muitas vezes estas pessoas não procuram cuidados sem ser numa situação sintomática em que, provavelmente, já estará instalada uma infeção.

HN – O que é o FOCUS, qual a sua missão e como é que pretendem combater estes dados que acabámos de discutir?
DM – O FOCUS é um programa de apoio a iniciativas de implementação de boas práticas em rastreio a vírus transmitidos pelo sangue. Estes vírus são o HIV e as hepatites virais B e C, e aquilo que o programa faz é apoiar numa relação de parceria as organizações que querem melhorar a sua prestação de cuidados de saúde no que diz respeito ao rastreio. Estas organizações podem ser hospitais, centros de saúde, ONG e também governos regionais.

Na prática, aquilo que efetivamente fazemos é ajudar a implementar programas de rastreio dentro de uma modalidade muito específica, que é o rastreio oportunista.

Quanto aos dados que discutimos, há uma diferença entre diagnosticar e rastrear: um diagnóstico com base em critérios clínicos implica que o médico que tem à sua frente um paciente com um conjunto de sintomas pense ‘estes sintomas podem ser compatíveis com determinada infeção, por isso vamos pedir um teste’. Um rastreio refere-se a uma situação em que a pessoa está de boa saúde aparente e realiza o teste simplesmente porque se encaixa numa faixa etária ou num determinado grupo populacional que se determinou rastrear. Neste caso, no Programa FOCUS apoiamos rastreios de larga escala  exatamente à população assintomática. Quer isto dizer que é mais fácil identificar as pessoas quando estão numa fase mais precoce da sua infeção, isto porque no VIH quanto mais tarde  a pessoa for diagnosticada, maior a probabilidade de ter sintomas. Por isso, se aumentarmos a frequência e a quantidade de pessoas que rastreamos, então vamos provavelmente encontrar pessoas em fase assintomática e, portanto, numa fase precoce. É assim que conseguimos melhorar esses números de diagnóstico tardio e diagnosticar as pessoas mais cedo.

HN – Mas porque é que esta forma de trabalhar ajuda as populações heterossexuais e migrantes?
DM – Nas populações homossexuais existem bastantes serviços que lhes são destinados, como os checkpoints. Quanto aos heterossexuais, principalmente nas faixas etárias que nos interessam, entre 18 e os 65 anos, são pessoas que raramente recorrem ao sistema de saúde e utilizam os serviços de urgência muito de vez em quando. Quando fazemos rastreios nestes locais acabamos por estar em contacto com as pessoas nas poucas ocasiões em que interagem com o sistema de saúde. A mesma coisa acontece com os migrantes, que comparativamente às pessoas nascidas em Portugal tendem a não usar tanto os cuidados primários e tendem a usar mais os serviços de urgência – um dos nossos principais focos.

HN – Deve ser um desafio colocar pessoas que não se enquadram na população de risco a fazer testes de VIH e doenças venéreas, sobretudo pelo estigma associado, ou não é assim que funciona no ambiente hospitalar?
DM – Sem dúvida que sim. O programa tem um duplo objetivo, por um lado rastrear as pessoas para que ajam de acordo com o diagnóstico, por outro combater o estigma associado ao teste. No último aspeto, o programa tem sido muito bem-sucedido porque em todos os locais onde está implementado as pessoas aderem em mais de 90% à proposta. É dada formação aos médicos e enfermeiros sobre como devem abordar as pessoas e qual a linguagem a utilizar explicando que não estão a propor a realização do teste com base na aparência ou em qualquer tipo de suspeita e, de forma descomplexada, explicar que é boa ideia fazer o teste. Mais de 90% das pessoas aceita, mas as outras 10% muitas vezes recusam porque têm conhecimento da sua infeção, no caso de já a terem, ou porque até realizaram um teste recentemente. Na maior parte das vezes que as pessoas se recusam não é por estigma, mas sim por motivos, digamos, “racionais”.

HN – Onde em concreto, e em que circunstâncias, são realizados estes testes “oportunistas” que mencionou há pouco?
DM – Chamamos-lhes oportunistas porque estas pessoas não vão à procura de fazer um teste. Estes testes implicam que, quando a pessoa recorre por qualquer motivo a uma instituição prestadora de cuidados de saúde, lhe seja proposto adicionar o teste ao que vai fazer. Por exemplo, uma pessoa a quem o médico solicita uma análise ao sangue pode adicionar o teste oportunista a estas doenças – estamos a tirar partido de uma oportunidade de juntar o teste.

E onde é que o fazemos? Nos sítios onde as pessoas vão para lhes serem prestados cuidados de saúde: nos centros de saúde e nos serviços de urgência. Neste momento estamos presentes no serviço de urgências do Hospital de Cascais, do Hospital Dr. Nélio Mendonça no Funchal, nos cuidados primários de toda a região autónoma da Madeira, e ainda no Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) em Lisboa, com cerca de quatro centros de rastreio físico e uma unidade móvel.

HN – É uma cobertura ainda aquém das expetativas, não?
DM – Sim, neste momento estamos focados na região metropolitana de Lisboa e na Madeira, e temos projetos para apoiar organizações no Norte, outras em Lisboa, no Algarve e nos Açores. Estes projetos dependem de negociações com a tutela, que tem de ter conhecimento e aprovar a sua implementação. São coisas que demoram, mas estamos muito investidos nisso e acreditamos que o facto de Portugal receber a presidência do Conselho Europeu (a partir de janeiro) é uma coisa que vai trazer mais atenção para este género de temas de saúde. Isto porque foi aprovado o plano para a saúde a nível comunitário, que acreditamos que vá ser um bom empurrão para continuar a expandir estes projetos.

HN – A Madeira tem sido várias vezes mencionada nesta entrevista. A minha pergunta é porquê a Madeira e com que bases é que procuraram fixar-se aí?
DM – A escolha das regiões é baseada na epidemiologia, ou seja, qual a situação de saúde pública destes vírus em cada região. Sem dúvida que, em Portugal, a situação mais importante é a de Lisboa e Vale do Tejo, onde se concentra a maior parte da epidemia, sobretudo do VIH.

A Madeira é uma região que tem problemas com o VIH, mas sobretudo com a hepatite C, onde existem algumas bolsas com números de casos elevados, pelo que foi considerado oportuno introduzir o projeto também na Madeira.

A mesma coisa com os Açores, com quem estamos em conversações com o Governo Regional. Esta é, ou pelo menos parece ser a região do país com maiores problemas em relação à hepatite C à escala da sua população, claro.

Já apoiamos Madeira e, se tudo correr bem, devemos começar a apoiar os Açores em 2021.

HN – E qual foi o impacto da Covid-19 na vossa estratégia de rastreio?
DM – Estamos a falar de um rastreio oportunista que depende da ida das pessoas aos serviços de saúde. Se as pessoas foram desincentivadas a fazê-lo, naturalmente que houve um decréscimo na quantidade de pessoas rastreadas por mês. Só no hospital de Cascais, onde se rastreavam cerca de 1.500 pessoas por mês, a quantidade de rastreios foi reduzida a cerca de 1.200 por mês. Estes números só não são tão maus porque o rastreio está automatizado a partir do sistema informático.

Noutros locais, como na Madeira, a redução foi mais substancial (superior a 40%) porque este é um projeto mais focado nos cuidados primários, que passaram na sua maioria a ser prestados por telemedicina.

A pandemia afetou o volume dos programas de rastreio mas eles mantiveram-se e continuaram a ser feitos diagnósticos mesmo durante a pandemia, tudo porque o processo está automatizado nos hospitais. Mesmo durante a fase de confinamento continuámos a diagnosticar pessoas, e isto é muito interessante até porque o VIH na sua fase aguda tem uma série de sintomas que podem mimetizar alguns dos sintomas veiculados sobre a Covid-19. Algumas pessoas com esses sintomas, que normalmente os desvalorizariam, acabaram por procurar os serviços de urgência achando que se tratava de Covid-19, mas, em alguns casos, era mesmo VIH.

Isto é algo que já foi observado nos Estados Unidos, em Portugal e em Espanha e sobre o qual até já existe informação divulgada e em fase de publicação. De certa forma, a Covid-19 veio até melhorar um pouco o diagnóstico, não em volume absoluto de testes (que desceu), mas porque as pessoas reconheceram sintomas que, sem saberem, eram sintomas de infeção aguda de VIH.

HN – Foi mencionado o programa de saúde comunitário, o EU4Health certamente. Em que medida é que o EU4Health está ligado ao FOCUS e como é que pode beneficiar os vossos objetivos?
DM – O EU4Health vai aumentar substancialmente o mandato da União Europeia para os assuntos em saúde. O ECDC europeu tinha uma função sobretudo de vigilância e monitorização, mas não muito interventiva. Neste momento, acreditamos que essa postura se vai alterar.

O EU4Health vai trazer mais importância para as estruturas europeias que trabalham a saúde como o ECDC e o Centro Europeu de Controlo de Drogas, também muito interventivo nestas questões graças à relação entre as hepatites virais e ao consumo de drogas injetáveis. Nos Açores, o aumento descrevi está também muito relacionado com o aumento no consumo de drogas injetáveis, que existem menos no resto do território.

Tudo isto vai ter atenção redobrada no EU4Health, que vai também passar a incluir indicadores de avaliação de desempenho dos países nestes assuntos todos, com campos específicos para o VIH, hepatites virais e tuberculose. Estas situações vão passar a ser monitorizadas com um papel muito mais importante no Parlamento Europeu.

Estas medidas já estão a ter efeito, por exemplo, nos Açores, que acaba de anunciar a criação de uma coordenação regional para o VIH SIDA, que antes não existia.

Apesar da autonomia destas duas regiões, os seus secretários regionais da saúde têm um contacto muito estreito com os serviços de saúde. Estas estruturas pequenas e com menos população são muito mais ágeis em matéria de saúde e têm muita vontade de fazer algo pela sua população. Não que essa vontade não exista no continente, mas esta máquina é muito mais pesada e difícil de fazer andar. É algo que comprovamos também em Espanha, onde o programa também está implementado, com cerca de 70% do share ibérico. Lá vemos a mesma coisa em relação aos benefícios de trabalhar com regiões autónomas.

 

Entrevista de João Marques

 

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