Nuno Jacinto Presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

“Não há milagres”

01/10/2021

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“Não há milagres”

10/01/2021 | Opinião

Vivemos hoje em Portugal uma situação muito complexa. O SNS está a atingir o seu limite e os Cuidados de Saúde Primários (CSP) estão à beira da exaustão. É impossível os médicos de família estarem em dois sítios ao mesmo tempo: dada a quantidade de novas atividades que nos foram e são impostas, que acrescem a tudo o que já fazíamos anteriormente e que já esgotava as nossas capacidades, e considerando que os recursos humanos existentes são exatamente os mesmos (até menos, nalguns casos), alguma coisa tem de ficar para trás. Os médicos de família têm trabalhado no combate à pandemia COVID-19 desde o seu início. Tem sido um trabalho árduo, exigente, desgastante. Mas tem sido um trabalho absolutamente decisivo e central: recordo que 95% dos casos suspeitos e doentes positivos são seguidos nos CSP, pelos médicos e enfermeiros de família. Nunca baixámos os braços, nunca desistimos, nunca abandonámos os nossos doentes. Não o fizemos e não o faremos. Contudo, perante o agravamento dos números a que temos assistido nos últimos dias, quer de novos casos quer de óbitos, é inevitável encararmos o futuro próximo com grande preocupação. Os profissionais de saúde em geral, e os médicos de família em particular, estão esgotados e há muito ultrapassaram aquele que pensavam ser o seu limite. É impossível pedir-lhes mais, é impossível exigir-lhes que trabalhem mais horas ou que realizem mais tarefas.

Esta pandemia, sobretudo nos meses em que houve uma relativa acalmia, deveria ter tido originado um forte e marcado investimento no SNS. Infelizmente tal não aconteceu. Mantemos graves falhas a nível dos recursos materiais e, sobretudo, dos recursos humanos, que se tentam colmatar em cima do acontecimento, de forma pouco preparada e estruturada e muitas vezes sem quaisquer efeitos práticos. Não tenhamos ilusões: se os médicos de família estão cada vez mais alocados a tarefas relacionadas com a pandemia, é humanamente impossível conseguir prestar os cuidados que os utentes e doentes não COVID continuam a necessitar.

Repito: não conseguimos estar em dois sítios ao mesmo tempo, não conseguimos fazer com que os nossos dias tenham mais horas. Há meses que temos vindo a alertar para esta situação e para os riscos de um colapso dos Cuidados de Saúde Primários que, infelizmente, vemos cada vez mais próximo. Em tom de brincadeira, há alguns meses dizíamos entre colegas que o passo final de qualquer fluxograma seria a invocação da ajuda divina. Crentes ou não, os médicos de família receiam que estejamos rapidamente a atingir esse ponto.

Continuamos imersos em tarefas burocráticas e administrativas, que cada vez nos consomem mais tempo. Fizemos um enorme esforço para retomar e recuperar a atividade assistencial programada, apesar de tantas vezes nos depararmos com limitações do espaço físico das próprias unidades ou com graves falhas de recursos humanos. E há coisas tão simples que podiam e deviam ter sido feitas, começando pela contratação de diversos profissionais que tanta falta nos fazem – seguranças para ajudar na triagem e orientação dos doentes à entrada das unidades, telefonistas para dar a resposta às múltiplas chamadas que os doentes efetuam e que não são atendidas, assistentes técnicos que faltam em tantas unidades e que são absolutamente cruciais para a atividade médicos e enfermeiros.

Os médicos de enfermeiros de família foram e continuam a ser alocados a ADR’s, ZCAP’s, EARS’ e outras estruturas criadas no âmbito da pandemia. Apesar de algumas bem-sucedidas experiências nalguns locais, nunca se criaram de forma generalizada equipas específicas para estas tarefas, algo que podia e deveria ter sido pensado e planeado de forma atempada e organizada. Para agravar todo este quadro, acresce que os profissionais dos cuidados primários também são humanos e por isso também acabam por ser afetados pela pandemia. São cada vez mais frequentes os casos de profissionais infetados ou em isolamento profilático, o que compromete ainda mais a assistência quer aos doentes COVID quer aos não COVID. Bem sabemos que vivemos tempos excecionais.

Que fomos apanhados de forma súbita por esta situação e para a qual, no imediato, ninguém poderia estar preparado. Mas após este impacto inicial era necessário planear o futuro a médio prazo. Ainda o podemos fazer, mas cada vez temos menos tempo para tal. Como tenho dito e escrito múltiplas vezes, precisamos que nos deixem ser médicos de família por inteiro e não apenas médicos da pandemia.

Os nossos doentes merecem que assim seja. Quando penso nesta situação, recordo-me do discurso de Santo António aos peixes: sentimos que estamos a falar no vazio, sem que ninguém nos ouça (ou queira ouvir). O grande problema é que, apesar das suas múltiplas e únicas capacidades, os médicos de família não são omnipresentes nem conseguem fazer milagres.

2 Comments

  1. Joana Torre

    Bom trabalho, Nuno, e para toda a direção! Bom trabalho para todos nós também. Beijinhos

  2. Gertrudes Caeiro

    Dr. Nuno Jacinto bom dia, quando esta pandemia começou, estava a frequentar uma formação de cuidador informal, que por causa da mesma não terminámos, o Dr. foi um dos formadores! estavam nos a transmitir técnicas e competências, para melhor podermos tratar os nossos idosos e familiares. A geração de ouro que estamos a perder, infelizmente os meus já tinham partido, mas é com muita magoa que vejo que muitos partem, vítimas de uma comunidade, irresponsável, egoísta e sem civismo. Por todos esses peço desculpa, por mim e pelos meus, obrigado a todo o pessoal de saúde, assim como para todos os profissionais, nas diversas áreas, para que nada nos falte, sempre têm trabalhado, bem hajam que Deus os proteja. Gostei do seu texto, mas na eborae, a minha unidade de saúde Familiar dentro da normalidade possível tudo tem corrido bem. ????

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