Relatos de demência em idade avançada de ex-futebolistas aguçam debate emergente

31 de Janeiro 2021

Os recentes diagnósticos públicos de demência e outras doenças neurodegenerativas em idade avançada de ex-futebolistas têm intensificado um debate com maior progresso científico e legal em desportos de contacto e de combate.

A temática ganhou protagonismo em novembro com a atualização do quadro clínico de Bobby Charlton, de 83 anos, contemporâneo de Pelé e Eusébio, campeão mundial e melhor jogador do planeta em 1966 e figura incontornável do Manchester United.

O antigo dianteiro internacional inglês revelou sinais de demência, que tinham acelerado as mortes do irmão Jack (85 anos), em julho, e do companheiro de equipa Nobby Stiles (78), dois dias antes do diagnóstico de Bobby Charlton anunciado pelos ‘red devils’.

Dentro da única geração gloriosa dos ‘três leões’, celebrizada a jogar com pesadas bolas de couro, Martin Peters (76 anos), Gerry Byrne (77), Peter Bonetti (78) e Ray Wilson (83) já faleceram com doença de Alzheimer, tão só a forma mais comum de demência.

Do mesmo fim padeceram a lenda húngara Ferenc Puskás, em 2006, aos 79 anos, ou Bellini, capitão do inédito título do Brasil no Mundial1958, em 2004, aos 83, enquanto o histórico goleador alemão Gerd Müller, de 75 anos, lida com Alzheimer desde 2015.

Em Portugal, o antigo avançado José Torres, apelidado de o ‘Bom Gigante’, foi dispersando as memórias dos constantes golos de cabeça ao serviço do Benfica e da seleção na década de 1960 e partiu em 2010, aos 71 anos, vítima da mesma doença.

A hipótese de os futebolistas desenvolverem doenças neurodegenerativas depois da despedida dos relvados pode estar ligada ao incessante ato de cabecear a bola e aos choques com outros colegas, mas também à própria qualidade de vida de cada um.

O saber científico ainda é escasso quanto a relações diretas, embora a morte do inglês Jeff Astle, a primeira justificada no desporto-rei por demência com encefalopatia traumática crónica (ETC), em 2002, aos 59 anos, tenha gerado dados preliminares.

Em outubro de 2019, a maior investigação de sempre na especialidade conduzida pela Universidade de Glasgow estimou uma taxa de mortalidade de antigos futebolistas por doenças neurodegenerativas cerca de três vezes e meia superior à média populacional.

A reação das federações de Escócia, Inglaterra e Irlanda do Norte foi replicar diretrizes estreadas nos Estados Unidos em 2015, ao proibirem menores de 12 anos de cabecear bolas nos treinos e normalizarem a utilização desse gesto técnico depois da maioridade.

Já o International Board (IFAB), regulador das regras do futebol, aguardou pelo final de 2020 para reformular o protocolo vigente sobre lesões na cabeça e começar a testar este mês a inclusão de substituições adicionais em caso de suspeita de concussão no jogo.

Essas medidas acompanharam o lançamento de instituições de caridade por parte de famílias de ex-jogadores diagnosticados com demência, no sentido de apoiar casos emergentes, promover práticas mais seguras e financiar pesquisas independentes.

Em todo o caso, parentes de 40 antigos futebolistas com danos cerebrais em idade avançada decidiram interpor uma ação judicial contra os organismos reguladores locais, acusados de negligenciar as repercussões dos golpes na cabeça nos treinos e jogos.

O escritório de advogados escolhido também está a preparar um processo idêntico em nome de 110 ex-jogadores de râguebi contra a World Rugby, incluindo Steve Thompson, de 42 anos, que já perdeu todas as memórias do título de campeão mundial em 2003.

Além da recompensa pelos prejuízos nas perspetivas laborais e no suporte de cuidados de saúde, procuram forçar mudanças na prática da modalidade, desde contactos limitados nos treinos até aos métodos sofisticados na deteção e tratamento de lesões cerebrais.

O futebol e o râguebi estão a decalcar a batalha travada no futebol americano em 2011, quando mais de 4.500 reformados processaram a Liga profissional (NFL), que teve de indemnizar perto de 18 mil ex-atletas em quase 630 milhões de euros dois anos depois.

A discussão era antiga e redundou no filme “A Força da Verdade”, no qual é retratada a descoberta e publicação científica da ETC no início do século pelo neuropatologista forense nigeriano Bennet Omalu, alvo de pressões de diversos quadrantes sociais.

A NFL foi insistindo na descredibilização das autópsias aos cérebros de vários atletas falecidos dos Pittsburgh Steelers, mas lá admitiu em 2009 elos entre os traumatismos cranianos acumulados ao longo da vida desportiva e danos neurológicos irreversíveis.

O crescimento de estudos e testemunhos motivou o desporto mais popular dos Estados Unidos a canalizar 54 milhões de euros no desenvolvimento de tecnologia e mais 36 destinados à investigação médica de uma patologia transversal a várias modalidades.

Até à viragem do milénio, a ETC era apelidada de demência pugilística, em função da tendência detetada a partir da década de 1920 nos lutadores de boxe, cujo historial de impactos e múltiplas concussões gerava perdas cognitivas, motoras e comportamentais.

Exemplo paradigmático sinalizou o norte-americano Muhammad Ali, ícone dentro dos ringues e abnegado defensor de causas sociais, políticas e religiosas, ao morrer em 2016 e culminar 32 de 74 anos de vida ‘asfixiados’ pela doença de Parkinson.

LUSA/HN

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