Em entrevista à agência Lusa, Ana Abecassis, médica do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) e líder da equipa que identificou Angola como o segundo país onde o Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) foi detetado, a seguir à República Democrática do Congo (RDCongo), em 1906, sublinhou que este estudo será uma oportunidade para a continuidade desta investigação.
A oportunidade surgiu na sequência da passagem do aluno angolano Cruz Sebastião pelo IHMT, durante um programa com a Gulbenkian, e de um projeto que, entretanto, obteve financiamento e vai permitir o regresso a Angola para “colher novos dados”.
“A partir destes novos dados podemos tentar voltar a esta história e tentar perceber como é que a epidemia em Angola se alterou e de que forma é que eventualmente os resultados que nós tivemos na altura podem ser atualizados”, explicou.
Neste regresso a Angola, os investigadores vão ainda olhar para a questão das resistências antirretrovirais, que preocupa a comunidade científica.
O estudo liderado por Ana Abecassis sobre a passagem do VIH por África, antes de chegar aos Estados Unidos, em 1981, e de ser isolado em 1983, pretendeu reconstruir a dispersão geotemporal dos vírus (filogeografia), neste caso do VIH, tentando apurar qual o papel que coube a Angola, uma vez que este país está localizado junto à República Democrática do Congo, de onde é oriundo o primeiro registo do vírus, nomeadamente Kinshasa, em 1906.
“Na primeira década de século XX o vírus já estava em Angola e este terá sido um dos primeiros lugares para onde o vírus foi exportado a partir de Kinshasa. Angola estaria envolvida na epidemia desde muito cedo”, afirmou.
Os investigadores tentaram apurar o que potenciou a propagação da pandemia, existindo várias hipóteses para a potenciação do vírus, como o aumento da mobilidade das populações e o crescimento de Kinshasa como cidade.
Também “o aumento da mobilidade que se deu ali na altura, a construção de linhas férreas, tudo isso foram fatores que contribuíram para o aumento da transmissão do vírus”, assim como “novos fatores de risco que surgiram, como o aumento do trabalho sexual. Pensa-se também que as campanhas de vacinação em massa possam ter contribuído para isso, ou campanhas de tratamento por via endovenosa com equipamento que não estaria esterilizado”.
As primeiras amostras, cuja informação foi trabalhada pela equipa de Ana Abecassis, foram isoladas em 1952, a partir de um cadáver.
“Com estes métodos evolutivos, que nos permitem olhar para trás do tempo, conseguimos reconstruir o início da pandemia em 1906. O vírus circulava ali e sabemos que ocorreram várias exportações do vírus a partir da República Democrática do Congo para outras partes do globo”, acrescentou.
E exemplificou com o subtipo B, que foi exportado primeiro para o Haiti e depois para os Estados Unidos, onde encontrou uma população com fatores de risco elevado, como homens que fazem sexo com outros homens, sem proteção e de uma forma frequente, um nicho para se transmitir e adaptar-se melhor e transmitir-se com mais eficácia, expandindo-se para a Europa. Para a África do Sul houve outra exportação do subtipo C, que partiu depois para a Índia.
A propósito do Dia Mundial da Sida, que se assinala hoje, e quando o mundo tem o foco num outro agente infeccioso – o coronavírus que causa a covid-19 – a investigadora alerta que o VIH continua a ser uma preocupação.
“O VIH preocupa sim, até porque a OMS estabeleceu metas, que em 2030 seria o fim da pandemia de VIH, mas as metas que estavam estabelecidas para 2020 não foram atingidas”, afirmou, acrescentando: “Se, por um lado, na Europa temos um panorama bastante positivo, há outros países onde isso não acontece”.
“Continua a preocupar, até porque, a partir do momento em que haja resistências a surgir em determinados países, se estas estirpes são exportadas para outros países, podemos deixar de ter terapêutica antirretroviral eficaz, embora este cenário no VIH seja menos provável, até porque temos um arsenal terapêutico bastante alargado que nos dá alguma segurança, mas a verdade é que as metas não foram atingidas”, referiu, recordando que “há países com elevados índices de resistência”.
Numa altura em que a desigualdade no acesso às vacinas contra a covid-19 tem sido apontada como uma das razões para o aparecimento da nova estirpe, uma vez que permitiu a sua propagação, Ana Abecassis indicou que a história do VIH, toda ela, é feita de desigualdades.
“É uma história de desigualdades em tudo. O vírus é identificado nos países de alta renda, nos Estados Unidos e na Europa, tendo circulado em África, despercebido durante anos e anos, porque em África não havia meios para identificar o vírus”. Foi “uma situação que é um bocadinho semelhante àquilo que está a acontecer com a SARS-CoV-2 neste momento, em que se desenvolvem fármacos eficazes para travar a infeção da doença que são utilizados nos países de alta renda e África é deixada ao esquecimento”, disse.
Em África, 25,7 milhões de pessoas vivem com o VIH. Só em 2018, o vírus foi responsável por 470.000 mortos neste continente.
O VIH ataca e destrói o sistema imunitário do organismo, aniquilando os mecanismos de defesa que evitam as doenças. No seguimento desta imunodeficiência, surgem várias infeções oportunistas que podem ser fatais.
LUSA/HN
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