“O nosso Carnaval certamente que não vai morrer. Vai voltar um bocadinho mais fraco e poderá até mudar um pouco as características cénicas, teatrais, mas a evolução é natural”, disse à Lusa, João Mendonça, escritor e ator do Carnaval terceirense.
A Autoridade de Saúde Regional dos Açores decidiu proibir “quaisquer festejos, celebrações ou eventos de natureza carnavalesca de 25 de fevereiro a 01 de março”, mas antes do anúncio, realizado em 10 de fevereiro, já a população da ilha se tinha mentalizado de que as tradicionais danças de Carnaval não regressariam em 2022.
Na ilha Terceira, o Entrudo é celebrado com manifestações muito próprias de teatro popular, com textos em rima, de comédia ou drama, na maioria dos casos com uma componente de crítica social, intercalados com música e coreografias.
As danças e bailinhos de Carnaval, que em 2020 integraram o Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial de Portugal, juntam todos os anos centenas de atores e músicos amadores em palco.
São os grupos que dão a volta à ilha, entre o sábado e a terça-feira de Carnaval, atuando, de forma gratuita, madrugada dentro, para milhares de pessoas que os aguardam nas mais de 30 salas de espetáculos da ilha.
Em 2020, a poucas semanas dos primeiros casos de infeção por SARS-CoV-2 detetados nos Açores, o Carnaval ainda se viveu de forma intensa, com a participação de cerca de sete dezenas danças e bailinhos.
Habitualmente, os ensaios arrancavam depois do Natal, mas com a subida de casos nos boletins diários da Autoridade de Saúde, ninguém terá arriscado organizar um bailinho, até porque os grupos não são remunerados e têm despesas avultadas, com roupas e deslocações, por exemplo.
“Os fazedores de cultura carnavalesca decidiram, e decidiram bem, não fazer Carnaval. É claro que não havia condições”, adiantou João Mendonça.
O risco de “a porca comer a dança” (expressão utilizada quando um grupo cancela as suas atuações) era grande.
“Se, a dois dias do Carnaval, um ou dois elementos tivessem apanhado Covid-19, e se fossem dois figurantes importantes, acabaria por arrumar o grupo. A porca comia a dança”, admitiu João Mendonça.
Por outro lado, não havia, por norma, nos salões das sociedades filarmónicas e das casas do povo da ilha, qualquer limite à entrada de pessoas, que chegavam mesmo a assistir de pé nos corredores.
“Os salões não reúnem as condições necessárias para o movimento do nosso povo que vai assistir e atuar”, reconheceu o autor.
Há 50 anos que o Carnaval faz parte da vida de João Mendonça, em cima de palco, como ator e cantor, e na voz de outros, através dos textos que escreve, carregados de crítica social.
A atualidade foi rica em temas para a língua afiada do autor, mas este ano só lhe chegou um pedido de assunto (texto teatral) da comunidade emigrante nos Estados Unidos da América.
“Para o ano, vamos voltar em força”, assegurou, sublinhando que pretende regressar aos palcos e continuar a escrever “enquanto tiver inspiração e mente”.
“Nunca digo que não saio mais, porque não iria cumprir, certamente. O desejo de voltar ao palco, quando chega à véspera, aparece sempre”, acrescentou.
O autor admitiu que o interregno de dois anos e o “comodismo de muitas pessoas” possa afetar os bailinhos e as próprias plateias.
“Se regressar com uma força de 70% a 80% já é bom. Depois, vai tomando o seu rumo ao longo dos anos”, afirmou.
Hélio Costa, que dá nome ao museu do Carnaval na Terceira, era o autor que mais assuntos escrevia na ilha, chegando a ultrapassar a fasquia das quatro dezenas por ano, mas, em 2021, aproveitou a pausa provocada pela pandemia para se retirar.
“Como não consigo escrever para os 40 grupos que escrevia em média, também não me ia sentir bem de escrever para sete ou oito e dizer que não aos outros”, explicou, alegando que a saúde, a idade e o cansaço já não permitem continuar com o mesmo ritmo.
Menos otimista, o autor não acredita que o Carnaval volte a ser tão cedo como o conheceu.
“Não estou a ver, nesta altura, nem nos próximos anos, o salão, como víamos antes, atulhado de gente, com os corredores cheios de homens encostados aos lados, com balcões cheios de gente a comer bifanas”, apontou.
“Oxalá esteja a ser pessimista, mas não estou a ver isso nos próximos anos. Se calhar aos poucos volta a ser o mesmo, mas já não é para os meus dias, com certeza”, acrescentou.
Durante mais de três décadas Hélio Costa escreveu mais de 1.300 assuntos para danças e bailinhos, mas já passaram 60 anos da primeira vez que subiu ao palco numa dança, ainda em criança.
Para o autor, o Carnaval deixa “saudades” e “faz imensa falta” à ilha, mas a “saúde está acima de tudo”.
“A gente vê a ilha nesta altura triste, despida de cor, de alegria, de poesia, mas quando se trata de saúde, é sempre um caso complicado”, salientou.
LUSA/HN
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