Estafetas das aplicações digitais sem legislação laboral própria

27 de Fevereiro 2022

Com dois anos de pandemia de Covid-19, constata-se um aumento das entregas de refeições em casa através de estafetas ao serviço de aplicações digitais, que se intensificou durante os confinamentos, mas estão por legislar os direitos destes trabalhadores.

Em Portugal, não existe uma lei específica para os designados parceiros de entrega das plataformas digitais, a trabalhar sobretudo por conta própria. O Governo apresentou aos parceiros sociais linhas de reflexão sobre eventuais medidas a adotar através do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, mas com o chumbo do Orçamento do Estado e a consequente ‘queda’ do executivo, o processo ficou parado.

De acordo com o advogado Pedro da Quitéria Faria, especialista em Direito do Trabalho, desde o início do ano 2020, “muito em virtude da pandemia, o mercado de trabalho ficou indelevelmente marcado pelos conceitos de flexibilidade e adaptabilidade, tendência a manter-se não só pela atual inconstância, como por ser a altura certa para a transformação positiva”.

“Passados que estão praticamente dois anos do início da pandemia, como se constata, assistiu-se a um aumento exponencial das entregas de comida ao domicílio através das plataformas e de restaurantes que o começaram a fazer e começaram a aderir a estas mesmas plataformas”, disse à Lusa, sublinhando que agora “importa compreender de que estatuto e direitos beneficiam estes trabalhadores” – os estafetas ou ‘riders’”.

Se, por um lado, as plataformas podem gerar novas oportunidades do ponto de vista de criação de emprego, com regimes de trabalho flexíveis, por outro, segundo Pedro da Quitéria Faria, “comportam múltiplos riscos”, desde logo “quanto ao vínculo contratual e às suas garantias e ao rendimento adequado”, bem como “desigualdades no acesso a proteção social ‘latu sensu’ ou outros direitos, como a formação profissional ou a segurança e saúde ocupacional”.

Uma das questões-chave, referiu, é a qualificação da relação entre a empresa que opera através da plataforma e os que através dela prestam serviços remunerados, “com celeuma em torno do grau de autonomia/subordinação jurídica e económica do desempenho da atividade”.

Pedro da Quitéria Faria, bem como Cláudia Ribeiro da Silva, associada da Abreu Advogados, admitem ter sido já dados passos a nível nacional com a publicação da Lei 45/2018, que estabelece o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (TVDE).

No entanto, o advogado sublinhou que as plataformas digitais “estão longe de se esgotar nesta atividade específica”, enquanto Cláudia Ribeiro da Silva considerou que a legislação regula “uma pequeníssima realidade” das plataformas.

“Claro que, atualmente, e sem legislação aprovada – e mais vincada – sobre esta matéria, a tendência é a de considerar que os estafetas ou ‘riders’ estão – em tese – mais próximos do regime do trabalho subordinado do que do trabalho independente, mas por vezes, para não dizer na sua esmagadora maioria, esta situação deverá ser analisada caso a caso”, afirmou Pedro da Quitéria Faria.

Ambos os advogados partilham da opinião que no Código de Trabalho atual existem mecanismos de “presunção de laboralidade”, previstos no artigo 12.º.

“O que se peticiona é que seja criada uma nova e inovadora espécie de ‘teste’ de verificação de indícios de presunção de laboralidade adaptado a estes casos concretos e cujos contornos são mais específicos, já que estamos a falar de uma realidade recente e absolutamente disruptiva relativamente à relação laboral clássica”, precisou Pedro da Quitéria Faria.

Segundo Cláudia Ribeiro da Silva, a única proteção que pode existir para estes profissionais é aquela que pode ser dada pela aplicação do “método indiciário”, previsto no artigo 12.º, que “permite apurar a existência ou não de subordinação jurídica (e, por conseguinte da existência de contrato de trabalho, que leva a que o trabalhador seja considerado como ‘trabalhador por conta de outrem’)”.

“A verdade é que a redação atual da norma poderá não ser suficiente para o caso tão específico dos trabalhadores que prestam atividade para as plataformas digitais”, acrescentou.

De acordo com a advogada, podem ser tomados pelo legislador nacional três caminhos para o enquadramento da relação jurídica dos profissionais das plataformas digitais. Duas delas são “inseri-los na categoria de trabalhadores economicamente dependentes (artigo 10.º do Código do Trabalho)” ou “através do reconhecimento de um contrato de trabalho subordinado pela via da criação de uma presunção de laboralidade (através do aditamento ao artigo 12.º)”.

Como terceira opção, aquela que lhe parece a “solução mais adequada”, surge a inserção através de um regime jurídico específico “de natureza jus-laboral, mas que fosse flexível o suficiente para abarcar a complexa e diversa realidade das plataformas digitais”.

Pedro da Quitéria Faria explicou, por seu turno, que o legislador poderá ter duas soluções: “Aditar um artigo 12.º A ao Código de Trabalho, em prol da estabilidade legislativa e da sistematização das normas no mesmo diploma, [ou então] legislar em diploma avulso, como se antecipa, sendo certo que, nos últimos dois anos, fomos já assoberbados com legislação avulsa em catadupa, pelo que talvez não fosse pior equacionar um aditamento de um artigo com critérios próprios para trabalhadores de plataformas digitais, junto do já conhecido artigo 12.º do Código do Trabalho”.

“De todo o modo, o imperativo que se exige é que se legisle bem, de forma eficaz e sem margem para grandes dúvidas interpretativas”, frisou o advogado.

Em dezembro de 2021, lembrou Cláudia Ribeiro da Silva, a Comissão Europeia propôs um conjunto de medidas para melhorar as condições de trabalho nas plataformas e apoiar o crescimento sustentável destas na União Europeia, através de uma diretiva que será debatida pelo Parlamento e pelo Conselho europeus.

Uma vez adotada, os Estados-membros irão dispor de dois anos para a transpor para o respetivo ordenamento jurídico, acrescentou Cláudia Ribeiro da Silva.

LUSA/HN

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