Operação Nariz Vermelho: 20 anos a aliviar a dor de crianças hospitalizadas

19 de Março 2022

“Se pensarmos sobre a criança hospitalizada, a partir do momento em que entra no hospital, perde direitos. Perde a escola, perde os amigos, perde a força, perde a vitalidade para brincar. Ela está ali a perder e deixa de poder comandar a vida. Eu acho que o que o Doutor Palhaço dá é esse empoderamento à criança.”

A pandemia desafiou a Operação Nariz Vermelho (ONV), mas não a travou. Impedidos de entrar nos hospitais, os Doutores Palhaços deram força às crianças, às famílias e aos profissionais de saúde a partir de casa, aparecendo em tablets presos em suportes de soro transportados por profissionais de saúde. Para além do Palhaços na Linha, a ONV lançou a TV ONV, no seu canal de Youtube, com dois vídeos inéditos por dia. Agora os Doutores Palhaços estão de volta aos 17 hospitais onde trabalham em duplas todas as semanas. Estes 30 artistas, com formação na arte do palhaço e para trabalhar em ambiente hospitalar, ajudam as crianças a tolerar a dor, colaborar nos tratamentos e a esquecer a dura realidade que enfrentam. “Se pensarmos sobre a criança hospitalizada, a partir do momento em que entra no hospital, perde direitos. Perde a escola, perde os amigos, perde a força, perde a vitalidade para brincar. Ela está ali a perder e deixa de poder comandar a vida. Eu acho que o que o Doutor Palhaço dá é esse empoderamento à criança”, explicou-nos a presidente da ONV, Luiza Teixeira de Freitas. Este ano, a organização celebra o seu vigésimo aniversário e quer agradecer a todos os que a apoiam.

HealthNews- A pandemia teve um grande impacto no vosso trabalho? Como é que se adaptaram à realidade pandémica?

Luiza Teixeira de Freitas (LTF) – A pandemia teve um impacto tanto ao nível individual, na vida de cada um, quanto a um nível mais global, institucional, de sociedade. Todos foram afetados pela pandemia. A Operação Nariz Vermelho não foi exceção, mas, surpreendentemente, reinventou-se em tempo recorde. Nós trabalhamos no local onde o risco era maior. De repente, o país está em pânico, o mundo está em pânico, não se pode ir ao hospital, obviamente, somos mandados ficar em casa como todos à nossa volta. E como é que uma pessoa que trabalha de uma forma tão vincada no presencial, com os olhos nos olhos, vai agora conseguir fazer isto em remoto? Mas foi incrível porque, numa semana, a equipa reuniu-se, juntou forças e imaginação e já tinha um plano para apresentar. No primeiro lockdown, a Operação Nariz Vermelho criou a TV ONV. Os Doutores Palhaços faziam vídeos em casa que eram lançados duas vezes por dia no canal de Youtube, às 10h e às 18h. Estes vídeos estavam disponíveis para as crianças hospitalizadas, mas também para qualquer pessoa que quisesse ver. Ou seja, acabou por ser um projeto que beneficiou também as crianças que estavam isoladas em casa. Vivi isso de uma forma muito pessoal. Os meus filhos perguntavam sempre pelos próximos vídeos.

Para os artistas, foi todo um novo mundo. Primeiro sentiram medo por não saberem o que lhes ia acontecer, mas logo perceberam: “Espera aí, agora o nosso universo artístico não é só o que cabe nos bolsos das nossas batas. Agora temos a nossa casa toda”. Então, de repente, temos Doutores Palhaços a voar, debaixo do mar, na praia, porque tudo era fruto da imaginação, do que podiam criar naquele cenário. Faziam vídeos em dupla, cada um em sua casa. Lançámos o canal três semanas depois do início do lockdown e estivemos no ar alguns meses. Quando terminou este primeiro momento, dos 17 hospitais onde trabalhamos, houve um que nos deu logo autorização a retomar o trabalho presencial, que foi ótimo para nos dar forças, como se nos dissessem: “Voltem já. Vocês fazem parte, venham”. Para todos os outros onde não fomos autorizados automaticamente a voltar, por todas as incertezas que se viviam, já tínhamos outro projeto na calha, o Palhaços na Linha, também pensado e criado pela nossa equipa – tablets pendurados num suporte de soro; dois Doutores Palhaços, cada um em sua casa, entravam em videochamada com o hospital. O tablet era transportado pelos profissionais de saúde, que nos levavam ao encontro de cada criança. Quase todos os hospitais abraçaram a ideia e, aos poucos, tínhamos este projeto a acontecer em quase todos os serviços onde trabalhávamos. Também foi muito bonito e emocionante ver como se estreitaram os laços, que já eram ótimos, entre a nossa organização e os profissionais de saúde. Nós precisávamos deles mais do que nunca, afinal, eram eles as nossas pernas. Agora, este mês, finalmente celebramos o retorno presencial em absoluto.

HN- Este foi o maior desafio que enfrentaram em 20 anos?

LTF- Sinceramente, olhando para trás e refletindo, penso que não. Foi um tremendo desafio, mas que veio mostrar o quão estável está a nossa organização. Digo isto porque uma organização que numa semana arranja uma solução, que num mês arranja outra e que não coloca nem um dos seus trabalhadores em lay-off, que continua a garantir uma estabilidade tanto emocional quanto financeira, é de louvar. Penso que o momento mais difícil da história da organização foi quando morreu a fundadora. Eu na altura não estava na direção, mas sei que foi muito complicado. Há pessoas que não dá mesmo para substituir, temos de arranjar outra forma de trabalhar, e eu acho que foi isso que se passou quando a organização perdeu a fundadora. Tiveram que passar por muitas crises e por um longo luto até se colocarem de pé novamente.

HN- Agora que estão de regresso aos hospitais, mantêm as abordagens que tinham há dois anos ou a pandemia trouxe-vos novas formas de trabalhar?

LTF- O trabalho depende muito dos artistas que lá estão – são 30 Doutores Palhaços, cada um é diferente – e também depende de cada hospital, das regras e preocupações de cada local de trabalho, de cada serviço. Nós estamos a trabalhar muito de acordo com o diálogo que temos com cada um. Cada hospital pede uma coisa diferente, ou tem algum requerimento ou preocupação  diferente. Nós falamos em 17 hospitais, mas visitamos mais de 100 serviços, ou seja, claro que há adaptações a fazer. As diretivas são agora mais rígidas, e também estamos com muito mais cuidado, para respeitar este medo que se vive. Por exemplo, os Doutores Palhaços nunca tinham trabalhado de máscara. Perderam assim, de certa forma, metade do rosto, sendo que o sorriso é das maiores ferramentas do nosso trabalho. Temos que aprender a trabalhar só com os olhos, a não tocar e a não chegar perto. Temos que trabalhar nisto, respeitar o tempo de cada um, mas sempre com a esperança de que voltaremos a conseguir abraçar-nos e a estar juntos sem medo.

HN- Estamos a falar de artistas preparados para trabalhar em ambiente hospitalar?

LTF- Sim. Os Doutores Palhaços são artistas especializados para estarem em ambiente hospitalar. São formados na arte do palhaço ou noutros tipos de artes performativas, mas sempre com a experiência em clown. Um Doutor Palhaço nunca entra para a Operação Nariz Vermelho e vai diretamente para o hospital fazer o seu trabalho. Há uma primeira fase de candidaturas e, mesmo depois de ser selecionado, há todo um momento em que o ‘novo’ Doutor Palhaço é acompanhado pelo diretor artístico e por um ou mais colegas, para aprender a estar naquele ambiente. Com a pandemia, tivemos que deixar de fazer muita coisa, muita formação. Agora, claro, a ideia é retomar. Além disso, os Doutores Palhaços são também acompanhados por uma psicóloga, que lhes dá o apoio necessário. Temos muito cuidado com a saúde mental da organização, que é muito importante. Fala-se muito, depois desta pandemia, de saúde mental, um assunto fundamental para pessoas que estão a trabalhar dentro do ambiente hospitalar.

O nosso trabalho não tem um fim terapêutico, mas acaba por auxiliar as equipas hospitalares no seu trabalho. Isto está provado nos estudos que temos feito ao longo dos anos. Temos uma equipa de investigação que trabalha diariamente com parcerias e protocolos com universidades de todo o país. Dentro da ONV a investigação é sem dúvida um elemento chave.

Importante também mencionar os vínculos. Nós vamos ao hospital uma ou duas vezes por semana, dependendo do hospital, e a relação que existe entre o Doutor Palhaço e a criança ou os seus pais é muito forte, assim como com os profissionais de saúde. Os Doutores Palhaços não veem a doença, trabalham o lado saudável da criança, vão à procura do espaço onde a dor não está. Embora o Doutor Palhaço trabalhe com o improviso, e claro está que há formações para que seja um bom improviso, são duplas que ficam seis meses sempre no mesmo hospital, para criar vínculos, para que seja um improviso, sim, mas sob algum controlo.

Finalmente, uma das qualidades mais importantes de um Doutor Palhaço é a compaixão, é saber ler o espaço, o momento do “posso entrar”, “eu sou bem-vindo aqui ou não”. Se a criança às vezes não quer, nós respeitamos, ou tentamos de outra forma e, se continuar a não querer, nós vamos embora. Ou seja, a criança tem o poder de escolher se quer ou não brincar com aquele Doutor Palhaço, se quer ou não rir, e num rol de coisas que ela perde, nós estamos a dar-lhe uma que ela ganha –  a decisão, porque ela é que escolhe.

HN- Quais os principais resultados do estudo que deu origem ao livro “Rir é o Melhor Remédio?”, publicado em 2016?

LTF- Há um número do qual eu gosto muito: “86% das crianças colaboram melhor com os tratamentos depois do contato com os Doutores Palhaços”. Isto é visível no nosso trabalho diário. Quando começamos o dia de trabalho nos hospitais, há um momento muito importante de conversa entre os nossos Doutores Palhaços e a equipa hospitalar, quase uma “passagem de pasta”, para saber, por exemplo, quem são as crianças mais recetivas naquele dia, quem precisa mais de nós, onde nos será difícil entrar, etc. Há mesmo episódios, cada vez mais frequentes, em que somos, por exemplo, chamados para ajudar uma criança a estar mais relaxada e, assim, ajudar a que equipa de saúde possa proceder a um determinado tratamento.

Outra percentagem que sai dos nossos estudos e que gosto de referir: 84% das crianças toleram melhor a dor. Aqui, se calhar, é um bom momento para falar do nosso projeto pioneiro, em que acompanhamos as crianças no bloco operatório, desde o momento em que se despedem do pai até ao último momento em bloco mesmo. Temos este projeto em um hospital de Lisboa, mas é um objetivo expandir para mais hospitais.

O estudo também conclui que 93% esquecem-se, por momentos, de que estão no hospital. Isto é um número fundamental, a questão do direito, de poder, por momentos, não sofrer e não estar ali, estar num sítio melhor. Há números também muito interessantes que têm a ver com a relação com os profissionais de saúde. Uma enfermeira comentava comigo esta semana as saudades que os profissionais de saúde tinham de nós e a falta que lhes fazíamos. Isto dá-nos um enorme alento. É como um carimbo de ouro no nosso trabalho.

HN- Como é que vão celebrar o vosso vigésimo aniversário?

LTF- A ONV faz 20 anos dia 4 de junho deste ano de 2022, muito perto do Dia da Criança e do Dia do Nariz Vermelho, e as celebrações, apesar de ocorrerem ao longo do ano, vão ver o seu ápice nessa altura. Temos duas ideias fundamentais para as celebrações. A primeira é celebrar a vida. Para nós, o mote é celebração da vida, e toda a comemoração vai girar à volta do agradecimento à comunidade – esse é o segundo objetivo, agradecer.

Nós somos uma organização que não tem nenhum apoio do estado. Tirando a nossa maior fonte de rendimento, que é a consignação do IRS, nós somos financiados por apoios pontuais ou regulares de privados ou de empresas, por campanhas, por parcerias. Ou seja, é um ano para agradecer à sociedade por reconhecer a Operação Nariz Vermelho enquanto organização, mas principalmente agradecer às crianças, aos pais e aos profissionais de saúde, que nos aceitam, que nos deixam entrar e que querem o nosso trabalho.

HN- Que projetos futuros têm em mente?

LTF- Claro que se fala sempre do sonho de chegar a todas as crianças hospitalizadas de Portugal –  que toda a criança hospitalizada possa ter um Doutor Palhaço a visitá-la. Temos pedidos de muitos hospitais, mas há muitos desafios. É difícil chegar a zonas mais remotas, por exemplo. Neste momento, está a decorrer um estudo sobre o projeto Palhaços na Linha e se fará sentido implementá-lo num hospital onde é mais difícil chegar. Mesmo que não seja o trabalho que nós fazemos, já vimos que o Palhaços na Linha funciona. Agora, será que pode funcionar um hospital só ter o Palhaços na Linha? Quem sabe. A pandemia também abriu esses novos caminhos, novas perguntas.

Mas, para chegar a mais hospitais, nós precisamos principalmente de mais Doutores Palhaços. Obviamente, precisamos sempre de mais fundos, porque na Operação Nariz Vermelho trabalham profissionais. Mas sem Doutores Palhaços não conseguimos chegar a mais hospitais. O grande desafio é, sem dúvida, a formação de novos Doutores Palhaços, porque não há suficiente em Portugal. Nós temos o sonho de abrir uma Escola de Palhaços de Hospital. É um grande sonho, mas temos essa qualidade, sonhamos sempre alto.

Entrevista de Rita Antunes

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