“Um olhar ético sobre a dor” foi este o nome do colóquio promovido esta sexta-feira pelo Centro de Estudo de Bioética (CEB). A sessão, apoiada pela Fundação Grünenthal, teve lugar no Anfiteatro Tomé Pires da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra (FFUC).
A partir de diferentes pontos de vista, os cerca de dez especialistas que participaram na conferência abordaram temas como: “Há possibilidade de medir a dor?”, “Há formas de tratar a dor?”, “Há humanidade a tratar a dor?”, “Quando a dor é mais do que um dói-dói”, “Quando a dor envelhece”, “Quando a dor traz más notícias e quando foi até ao fim”.
A abertura da sessão foi conduzida por Carlos Costa Gomes, Presidente do CEB, e Fernando Ramos, Diretor da FFUC. Os responsáveis destacaram o papel da faculdade na humanização dos cuidados que são prestados aos doentes e o “painel rico em qualidade científica e competência ética”.
Apontada como a “cidade da bioética”, foi em Coimbra que o encontro juntou perto de cinquenta participantes. A moderação do primeiro painel foi da responsabilidade de Rita Tinoco da Fundação Grunhental.
Há possibilidade de medir a dor?
A definição da dor, a medição, a humanização e tratamento foram os temas quentes do primeiro painel “Fitando a dor”. No arranque da sessão, moderada por Rita Tinoco, da Fundação Grunenthal, Pedro Ferreira da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (FEUC), começou por definir a dor como uma “experiência subjetiva, sensorial e emocional desagradável”, a qual está “associada a danos reais ou potenciais em tecidos”.
O professor catedrático frisou que “é possível medir a dor”, destacando algumas estratégias utilizadas em contexto clínico. Entre as várias escalas (escala visual analógica, escala numérica de avaliação e escala de categorias verbais/visuais), através das quais os doentes são questionados sobre a intensidade, frequência, duração e localização da dor.
Segundo Pedro Ferreira, ao longo dos anos os instrumentos de avaliação da dor foram sendo adaptados às diferentes faixas etárias, às diferentes partes do corpo e ao estado de saúde dos doentes (existindo escalas próprias para os doentes em unidades de cuidados paliativos). Na sua intervenção, o especialista fez questão de mencionar alguns dos questionários validados em Portugal – os únicos que devem ser utilizados – para medir e avaliar o impacto da dor na qualidade de vida dos doentes (RMQ, S6IQ, ICOAP-Hip, ICOAP-Knee, HIT-6 e PIQ-6).
“As escalas devem ser aplicadas de acordo com a idade, literacia, capacidades cognitivas e necessidades dos doentes”, conclui.
Há formas de tratar a dor?
Na mesma linha de pensamento, Michel Luís, do IPO do Porto, subscreve a ideia de que “medir a dor não implica apenas medir a sua intensidade, mas também perceber o impacto que tem na vida dos nossos doentes”. O especialista alerta que “mais de cinquenta por cento dos países desenvolvidos não tem a dor controlada”, provocando “custos elevadíssimos no absentismo laboral”. “É claramente um problema que importa olhar e estudar”, afirma.
O médico explicou que a dor pode ser “aguda, crónica e irruptiva” e que o tratamento passa por estratégias farmacológicas, “com opióides fracos e fortes” e medidas não farmacológica, como a hipnose e a acupuntura.
Na sua intervenção, Michel Luís fez questão de frisar que “o fenómeno da dor não se trata apenas da dor física, mas também de dor emocional e psicológica”.
O especialista em Cuidados Paliativos conclui que apesar de a dor ser “controlável com uma estratégia terapêutica adequada em oitenta a noventa por cento dos casos”, é preciso ter “muita atenção” com a adequação do tratamento de forma a evitar a medicação excessiva dos doentes.
Há humanidade a tratar a dor?
Se há ou não humanidade no tratamento da dor, Ana Sofia Carvalho do ICBAS, afirmou que “infelizmente não há”.
A professora catedrática citou um estudo recente, realizado no Reino Unido, onde foi revelado que 24% dos adultos vivem com dor crónica. A nível mundial, a especialista refere que há evidência de que 80% dos doentes que são submetidos a procedimentos cirúrgicos sentem dor pós-operatória. Entre 40 a 85% dos idosos institucionalizados em lares dizem sofrer de dor crónica, sendo que nas pessoas com demência os valores são “ainda mais significativos”.
Sem conseguir ignorar o facto de a eutanásia poder vir a ser aprovada em Portugal, Ana Sofia Carvalho considera que a percentagem elevada de doentes em fim de vida que sofrem de dor “deveria ser um assunto privilegiado”. “Esta ideia de que as pessoas morrem com dor é realmente um motivo para as pessoas defenderem a ‘malignidade’ no momento da morte”.
Sobre das barreiras que existem no tratamento da dor, Ana Sofia Carvalho aponta a falha que existe na relação médico-doente e a forma como a Medicina ainda é vista. “Infelizmente ainda continuamos a olhar para a Medicina como uma área científica e técnica e não como uma área humanista”, refere para depois acrescentar que “muitas vezes os médicos não encontram na dor um motivo de prioridade”.
Na sua intervenção a oradora concluiu que “vai ser muito difícil melhorar os índices de dor se a medicina continuar a ser encarada como uma área meramente técnica”.
Quando a dor é mais do que um dói-dói
«A dor nas diferentes faixas etárias, o impacto na qualidade de vida e a importância da ética na comunicação com os doentes foram os temas em destaque do segundo painel “Fintando a dor”. A moderação deste segundo painel foi da responsabilidade de Margarida Castel-Branco, da Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra e Coordenadora do Polo de Coimbra do Centro de Estudos de Bioética».
Esta segunda parte ficou marcada pela leitura de um poema escrito por Ana Alves, uma doente que explica na primeira pessoa como é sofrer com dor. No poema foi retratado o sofrimento de quem vive “dias sem fim” de dor.
Sobre a dor nas crianças, o médico do Centro Hospitalar de S. João, Filipe Almeida revelou que esta nunca é esquecida. “As crianças guardam a memória da dor. Sabe-se atualmente que a dor não tratada pode ter consequências na vida da criança a curto e longo prazo, não só no que toca à sensibilidade dolorosa, como também no funcionamento do sistema imunológico.”
O pediatra destacou que a dor é o sexto sinal vital a monitorizar. “Não matar a dor é abrir portas a que a dor severa possa matar o próprio viver, transformando os profissionais de saúde em agentes eutanasiantes ao deixarmos os nossos doentes em desespero”.
Quando a dor envelhece
A dor nos idosos foi o tema abordado por Sofia Duque. Segundo a especialista em Geriatria, a dor é a queixa mais frequente nos idosos, sendo que a prevalência pode atingir os 8 % nos idosos institucionalizados.
Sob o tema “Quando a dor envelhece”, Sofia Duque sublinhou que as alterações bioquímicas, morfológicas e funcionais nos idosos aumentam o risco de doenças crónicas e de síndromes geriátricas (dor, quedas, depressão, insónia, desnutrição, fadiga, isolamento, entre outras).
“Não podemos ignorar que a dor causa múltiplas síndromes geriátricas que, no final, comprometem a qualidade de vida”, afirmou para depois admitir que “existe uma dificuldade em abordar a dor nos idosos”. Entre as hipóteses levantadas por parte da especialista foi mencionada a desvalorização da dor e o facto de ser encarada como “normal” no envelhecimento.
À semelhança dos restantes especialistas, Sofia Duque defende que é necessário melhorar a relação médico-doente, havendo uma “resposta rápida do médico quando contactado pelo doente”. Aos olhos da especialista é necessário que o profissional de saúde considere, assim, as queixas do doente como verdadeiras, defina objetivos e expectativas realistas.
Quando a dor traz más notícias e quando dói até ao fim
A importância da ética na comunicação foi o tema que encerrou a sessão “Um olhar ético sobre a dor”. Isabel Galriça Neto, médica especialista em cuidados paliativos há mais de vinte anos, defende que para ser um “bom profissional de saúde” é preciso ter “empatia e compaixão”. A especialista frisa que transmitir a transição do doente para os cuidados paliativos “é sempre uma péssima notícia”, sendo fundamental que haja um “olhar ético por parte do profissional de saúde”.
Segundo Isabel Galriça Neto, o objetivo da medicina não pode ser só a cura. “É preciso haver uma preocupação pela dor e sofrimento dos doentes”, defende. A médica frisa que a dor não é unicamente física, havendo muito doentes que têm “dor de alma”.
Aos olhos da especialista “os doentes incuráveis não são doentes intratáveis”, defende, assim, que “ter cuidados paliativos não deveria ser uma opção, mas sim um direito para todos os doentes em qualquer fase da doença”. Aliás, sublinhou, “consagrado na Lei”.
A sessão foi encerrada por Walter Osswald, Presidente da Fundação Grunhental.
Reportagem de Vaishaly Camões
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