Violência obstétrica?

18 de Outubro 2022

Acácio Gouveia Especialista em Medicina Geral e Familiar

34“(…) dizia que não fazia parto, quem o fazia era a mãe, (ela) apenas ajudava”
Itamar Vieira Junior in ‘Torto Arado’

 

Embora não seja obstetra, permito-me a ousadia de alinhavar alguns considerandos sobre a apelidada “violência obstétrica”.

O equívoco

Comecemos com uma surpresa. Na sequência duma busca rápida no Google, as referências à “violência obstétrica” são aos molhos, mas, curiosamente, é deveras difícil encontrar alusões a violências visando outra qualquer especialidade médica. Conclui-se que a obstetrícia é a única em que as utentes/doentes são sujeitas a malvadezas merecedoras do epíteto de “violência”, ausente em todas as outras: psiquiatria, urologia, fisiatria, etc., etc.. Mas…. por que carga de água?

E as surpresas não ficam por aqui. Na página da OMS em português, encontra-se o texto com o título: “Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos, durante o parto, em instituições de saúde”, em que não se menciona especificamente “violência obstétrica” (1). O termo “violência” surge sim, mas referindo-se à violência explicita, como um dos elementos do conjunto de situações a eliminar e não como o conjunto dessas mesmas práticas nefastas. Dito doutro modo: o citado documento da OMS elenca diversos procedimentos que devem ser eliminados, mas não os apoda de violentos, junta-lhes, isso sim, a violência.

Em boa verdade estas atuações sempre foram qualificadas como “más práticas” médicas, isto é, à margem da ética médica, e, portanto, reprováveis e suscetíveis de procedimento disciplinar e legal (cível ou mesmo criminal). Mas há más práticas, que são igualmente proscritas, em todas as especialidades (pediatria, medicina familiar, cardiologia, ortopedia, etc., etc.), e não só na obstetrícia. Então porque é que foi aplicado à obstetrícia, em regime de exclusividade, este superlativo semântico?

O porquê do equívoco

Este claro desacerto linguístico encontra explicação na deplorável condição da mulher por esse mundo fora, como foi alvitrado no parecer do Colégio da especialidade de Ginecologia e Obstetrícia da Ordem dos Médicos de 26 de julho de 2021.

Mais do que discriminação, estamos perante perseguição contra o género feminino. No mundo islâmico, com diferentes cambiantes geográficas, a mulher é desconsiderada (veja-se a campanha de terrorismo de estado contra as mulheres iranianas); as ativistas indianas queixam-se que as vacas estão mais protegidas que as mulheres nesse subcontinente; a Duma russa, em 2017, legalizou a violência masculina sobre as esposas (dentro de certos limites: não vale tirar olhos, nem partir ossos!); no norte e ocidente de África a mutilação genital feminina está enraizada. Chega-se ao cúmulo de usar a conceção como meio de agressão e opressão sobre as mulheres: a gravidez em idade muito precoce, gravidezes múltiplas ou sem consentimento da mulher e outros abusos desrespeitadores da fisiologia feminina. Assim sendo, não seria mais adequado alvitrar a designação “violência anti-obstétrica”? Ou, pelo menos, “de cariz anti-obstétrico”?

O canhestro rótulo em questão é fruto das preocupações com essa maioria de mulheres e não na minoria das que vivem em regiões onde o género feminino é menos desconsiderado, nomeadamente na Europa. Portanto, nestes países, o conceito de “violência obstétrica” (já de si atribuído de forma algo abusiva à OMS, como vimos) é ainda mais questionável. Contudo, parece que é justamente nestes, que este conceito tem tido mais acolhimento (juntamente com a América Latina). Fruto do eurocentrismo reinante, estamos perante um exemplo flagrante da lei dos cuidados inversos – concebido por Julian Hart – a nível planetário. Nas populações onde a preocupação com os direitos da mulher grávida está mais ausente são aquelas em que menos mudança será de esperar: África, Ásia, etc.; já onde as mulheres beneficiam de cuidados obstétricos de qualidade, e onde há menos espaço para melhorias, esta campanha parece ter ganho popularidade. Pior: paradoxalmente, a campanha gerada à volta deste equívoco semântico não é isenta de riscos para a grávida e nascituro, como veremos.

Entendamo-nos:            

A obstetrícia tem por objetivo proporcionar à gestação e parto um desenrolar saudável e desfecho em segurança, evitando a morte ou complicações, para mulher e para o bebé. Baseia-se em critérios científicos. O movimento cívico em luta contra a chamada “violência obstétrica” tem por objetivo empoderar a mulher grávida para maximizar a sua interferência nas decisões clínicas. Privilegia os direitos da mulher e tem cariz ideológico. Mas é mister referir que nos objetivos da obstetrícia, embora baseados em critérios científicos, estão também implícitos critérios do direito, uma vez que a proteção da vida e da saúde é, não só um propósito hipocrático, mas também um direito fundamental consignado no artigo 64 da nossa Constituição. Será que não haverá aqui um eventual conflito de foro jurídico, entre o direito da grávida em interferir nas decisões clínicas, e o constitucional direito à vida e à proteção da saúde, que, como vimos é inerente a esta? Mas deixemos essa questão para quem de direito. Contudo, estamos também perante um potencial conflito entre o direito e a ciência, ao pretender que se legisle à revelia da ciência. Porém, ambos os conflitos são esvaziados pelo parecer do Conselho Geral da Ordem dos Advogados datado de 2021/09/02, que conclui: “No entanto, cremos que, a relevância do assunto em questão e a necessidade de uma eventual alteração legislativa, designadamente, para criação de um novo tipo legal de crime, carece de debate sustentado por estudos técnicos e científicos aprofundados direcionados à realidade Portuguesa”. Que é como quem diz: “Pronuncie-se primeiro a ciência e depois cá estaremos para opinar”.

Se na génese do conceito de “violência obstétrica” há uma certa nebulosidade, já no listar das tais “violências” prevalece a arbitrariedade e a confusão. Quem define um procedimento obstétrico como violento? Serão os próprios ativistas?

Afirmam os militantes “anti” que as suas propostas e alertas são cientificamente baseados. Contudo, perante o que se pode ler no site e na imprensa, e tem sido dito em intervenções na Rádio e na Televisão por ativistas deste movimento, é insofismável que tal não é verdade. Algumas das propostas não só carecem de base científica, como são contrárias a boas práticas com resultados inequívocos e repetidamente confirmados. Tomemos dois exemplos: a episiotomia e o parto domiciliário.

Comecemos pela episiotomia, cuja prática por rotina é já considerada má prática obstétrica. Contudo, a sua proscrição total, desiderato deste movimento cívico, é uma pura e trágica ilusão. Isto porque, num limitado número de partos, a episiotomia, mesmo na ausência de intervenção do técnico, irá ocorrer de forma natural (e escrevo natural sem “ ”, propositadamente). Como sabemos, estas “episiotomias” naturais são mais cruentas e mais difíceis de corrigir, que as executadas por enfermeiros especialistas e obstetras. Quer dizer, mesmo que fosse legislada proibição total das episiotomias elas continuariam a ocorrer, porque as leis dos homens não se sobrepõem às leis da natureza e fica claro que o resultado dessa hipotética iniciativa legislativa resultaria em acrescido dano obstétrico.

Quanto ao parto domiciliário, está amplamente comprovada a sua perigosidade, que não desaparecerá por eventual vontade dos legisladores da Assembleia da República. Promovê-lo tem a ver com ideologia, e não com a segurança e o bem-estar das grávidas e recém-nascidos.

Pelo que ficou dito, podemos concluir que esta militância contra a apelidada “violência obstétrica”, sem respaldo científico, ou jurídico, envereda pelos atalhos pouco recomendáveis das falsas ciências. Recordemo-nos que entre as práticas a abolir referidas pela OMS, consta a ausência de prestação de cuidados de qualidade e atempados. Ora, a presente cruzada promotora defende procedimentos perigosos (parto domiciliário) e diaboliza muitos outros que são úteis à luz do estado da arte, isto é, priva as grávidas deles usufruir. Portanto, o paradoxo trágico destes ativistas consubstancia-se no risco da sua militância poder resultar no que classifica como “violência”.

Vivemos tempos férteis em iniciativas para rescrever a ciência, à revelia das boas regras de método científico, laboriosamente aperfeiçoado desde Ibn al-Hayan. Curiosamente estas iniciativas ganham adeptos, por mais absurdas que sejam. Vejam-se os movimentos antivacinas, por exemplo, já para não citar outros mais grotescos ainda.

Oportunidades

É indispensável acrescentar que este movimento, apesar dos seus equívocos, oferece oportunidades a não deixar escapar. Talvez possa, apesar de tudo, ser aproveitado para rever procedimentos e, sobretudo, avaliar a adesão aos mesmos. Mais importante ainda, deve reconhecer-se que estamos perante uma potencial janela de comunicação com a sociedade civil, providenciando o aumento da sua literacia sobre saúde da mulher e, ainda um pretexto para melhorar a relação médico-grávida. Assim, o Colégio da Ordem dos Médicos e as Sociedades Científicas sejam capazes de demolir alguns castelos de marfim em que se alojam.

Termino com um par de desabafos impertinentes. Porque não se dedicam a lutar contra a mutilação genital feminina, essa sim, inquestionavelmente, uma violência horrível e que tenderá a aumentar no nosso país por via da imigração proveniente de países onde este flagelo é regra?

Uma das preocupações assumidas pelas líderes deste movimento prende-se com a excessiva medicalização. Esta preocupação é legitima. Ora, a medicina familiar, porque é a que mais facetadas interfaces tem com outras especialidades, está em posição privilegiada para comparar e avaliar a performance dessas várias especialidades. Desta forma, enquanto médico de família considero que, indubitavelmente, poucas especialidades oferecem tanto de benéfico e são tão isentas de dano como a obstetrícia. Havendo tantos domínios controversos na prática da Medicina, seria bem mais útil que a militância anti-obstétrica apontasse para outros alvos, onde a iconoclastia seria bem mais justificada e suscetível de abrir os horizontes e de gerar paradigmas que minimizassem a medicalização excessiva.

 

(1) https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf

 

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