HPV: “Uma parte significativa dos doentes procura tratamento por questões estéticas e de culpabilização”

10/19/2022
“O carácter multidisciplinar do HPV Clinical Cases é uma enorme mais-valia. Neste evento, temos a oportunidade de nos integrarmos na diversidade de patologias relacionadas com o HPV e abordagens terapêuticas, o que nos permite uma visão mais holística da infeção por HPV”, disse ao HealthNews Bruno Jorge Pereira, Consultor em Urologia do Serviço de Urologia do IPO de Coimbra.

HealthNews (HN)- Qual a prevalência global da infeção por vírus do papiloma humano (HPV) observada em Portugal e em particular nos homens?

Bruno Jorge Pereira (BJP)- A infeção da área genital pelo HPV é muito frequente em ambos os sexos. Apesar de ser difícil de averiguar a real prevalência do HPV no sexo masculino (mesmo o Human Papillomavirus and Related Diseases Report 2022 do HPV Information Center não consegue facultar estes números devido à ausência de estudos epidemiológicos no nosso país), estima-se que 50% dos indivíduos sexualmente ativos são infetados pelo menos uma vez ao longo da vida. Enquanto no sexo feminino existe um pico de incidência em mulheres jovens (início da vida sexual até aos 25-30 anos), a prevalência nos homens é tendencialmente mantida ao longo da vida.

HN- O rastreio regular é a melhor forma de detetar precocemente infeções por HPV, como se faz esta deteção precoce no caso dos homens?

BJP- Atualmente, não está preconizado o rastreio precoce ou regular no sexo masculino no que diz respeito à área genital. Ao contrário do que acontece no sexo feminino, em que a infeção por HPV tem uma significativa importância epidemiológica pela sua influência no desenvolvimento de cancro do cólo do útero, os homens desenvolvem essencialmente manifestações clínicas benignas (condilomas ou verrugas genitais). Assim, os indivíduos do sexo masculino são principalmente um veículo de transmissão do vírus para as mulheres. É certo que também estão em risco de desenvolver outros cancros relacionados com o HPV, como os cancros do pénis, da região anal e da cabeça e pescoço, comparativamente bastante menos prevalentes que a neoplasia do cólo do útero. O cancro do pénis pela sua incidência extremamente baixa faz inclusivamente parte das neoplasias raras.

Não estão indicados exames de rotina para parceiros assintomáticos de doentes com diagnóstico de infeção por HPV. Este grupo de indivíduos será, com grande probabilidade, portador do vírus e beneficiará de estratégias de prevenção da infeção por outros serotipos de HPV, conselhos de educação sexual e rastreio de outras infeções de transmissão sexual. Nenhum teste laboratorial de triagem pode determinar se uma pessoa já é imune ou ainda susceptível a qualquer subtipo de HPV.

HN- De que forma o diagnóstico precoce pode influenciar o curso da infeção?

BJP- Do ponto de vista urológico, as manifestações clínicas genitais (condilomas ou verrugas genitais) relacionam-se predominantemente com subtipos de HPV de baixo grau (90% estão associados ao HPV 6 e 11). A infeção por subtipos de alto risco (com particular relevância para o HPV 16 e 18) é, por regra, assintomática ou subclínica nos indivíduos do sexo masculino.

O reconhecimento atempado de lesões relacionadas com o HPV faculta aos clínicos uma oportunidade de fornecer ensinamentos na área da educação sexual e na prevenção de novas infeções por HPV ou outras infeções sexualmente transmissíveis (IST’s). Permite-nos ainda iniciar estratégias de rastreio aos seus contactos sexuais, principalmente àqueles do sexo feminino, particularmente suscetíveis ao desenvolvimento de neoplasias genitais relacionadas com HPV.

HN- Qual a importância da Urologia e da Andrologia na área do HPV?

BJP- Os doentes que recebem um diagnóstico de infeção por HPV sofrem com frequência pelo estigma de portadores de uma infeção sexualmente transmissível, pelo receio da inexistência de um tratamento curativo e pela incerteza acerca da remissão, progressão e possibilidades de transmissão do vírus. Na qualidade de fonte mais fidedigna de informação sobre a infeção por HPV, os médicos têm um papel fundamental na educação dos doentes e na moderação do impacto psicossocial do diagnóstico.

As lesões genitais benignas por HPV não induzem nem progridem, por regra, para cancro pelo que o seu tratamento está indicado por motivos estéticos visto que podem acarretar estigma, sentimentos de culpa, discriminação e sofrimento psicossocial significativo assim como preocupações de transmissão ou agravamento das lesões já existentes.

A possibilidade de vacinação deve ser ativamente discutida com o paciente, tendo como objetivo a proteção contra infeções por outros e mais agressivos serotipos de HPV ainda não adquiridos e a potencial redução da taxa de recorrência das lesões benignas. É que a maioria dos adultos sexualmente ativos foi exposta a um ou mais subtipos de HPV, mas não necessariamente a todos os tipos de HPV visados pela vacinação. Desta forma, também é possível circunscrever a transmissão a contactantes sexuais e evitar repercussões na sexualidade dos indivíduos afetados.

Como urologista e andrologista, sou completamente favorável à imunização ativa. Temos grandes exemplos na Medicina moderna da eficácia e êxito deste tipo de prevenção primária, alguns muito recentes como a vacinação anti-COVID-19. Com o uso crescente e progressivo da vacinação, estou confiante de que iremos assistir a uma redução da incidência da infeção por HPV e doenças oncológicas dependentes.

Por outro lado, apesar de o cancro do pénis ser pouco frequente (2,47 casos por cada 100.000 homens por ano de acordo com o Human Papillomavirus and Related Diseases Report 2022 do HPV Information Center), existem lesões penianas pré-malignas relacionadas com a infeção por HPV de alto risco (principalmente serotipos 16 e 18) que incluem a doença de Bowen, a eritroplasia de Queyrat e a papulose bowenóide. O diagnóstico e tratamento atempado destas lesões evita a progressão para o carcinoma do pénis.

HN- Qual o papel do sexo masculino na transmissão da doença?

BJP- Pelos motivos anteriormente elencados, do ponto de vista epidemiológico, o sexo masculino, funciona maioritariamente como um reservatório e veículo da transmissão do HPV. Para proteção dos próprios, mas também para progressiva redução da disseminação, os rapazes nascidos a partir de 2009 estão incluídos no Plano Nacional de Vacinação (PNV) desde 2020. Os indivíduos não abrangidos pelo PNV também poderão realizar a imunização desde que devidamente recomendados e esclarecidos.

HN- Neste domínio ainda existem preconceitos e estigma que urge desmistificar?

BJP- Sem dúvida. Uma parte significativa dos doentes procura tratamento, não pela sintomatologia, que geralmente está ausente, mas por questões estéticas e de culpabilização, que podem acarretar discriminação e sofrimento psicossocial significativo, assim como preocupações de transmissão ou agravamento das lesões já existentes.

Uma grande parte dos cônjuges de um indivíduo portador de condilomas genitais pode acusá-lo de traição e infidelidade. O facto de uma pessoa ser portador de HPV apenas indica que ela foi exposta por um(a) parceiro(a) actual ou passado. Devem considerar-se, em primeiro lugar, os companheiros anteriores mais recentes, nos últimos 6 meses. Todavia, uma infeção também pode ter sido adquirida alguns anos antes, contida pelo sistema imunitário e apenas posteriormente ativada em fases de imunossupressão. Neste âmbito, os médicos têm um importante papel na clarificação e dissipação de dúvidas, questões e eventuais acusações.

Parece existir uma tendência para a redução do uso de métodos barreira como o preservativo. Várias campanhas públicas que incentivavam o uso do preservativo durante as relações sexuais foram levadas a cabo no passado tendo como principal objetivo a evicção da transmissão do HIV, mas que eram eficazes na prevenção de outras IST’s. Embora não sejam um método perfeito na profilaxia da propagação do HPV tendo em conta que o vírus se transmite através do contacto cutâneo, é ainda uma das melhores defesas contra a infeção por HPV. Como agentes de educação sexual, os médicos devem incutir atitudes de prevenção primária, como o uso de preservativo e o incentivo à imunização.

HN- O Congresso “HPV Clinical Cases” destina-se a incentivar a divulgação de casos clínicos. Considera que a promoção da discussão multidisciplinar é essencial para melhor os cuidados de saúde a prestar aos doentes?

BJP- O carácter multidisciplinar do HPV Clinical Cases é uma enorme mais-valia. Neste evento, temos a oportunidade de nos integrarmos na diversidade de patologias relacionadas com o HPV e abordagens terapêuticas, o que nos permite uma visão mais holística da infeção por HPV.

Considero que os urologistas e andrologistas desempenham um papel muito relevante na educação, profilaxia e tratamento do HPV e, por isso, devem integrar qualquer painel multidisciplinar nesse âmbito.

Não obstante a relativa baixa incidência das neoplasias genitais relacionadas com o HPV, não podemos descurar a importância das neoplasias de outras áreas anatómicas (cabeça e pescoço, anorretal) relacionadas com práticas sexuais desprotegidas e cada vez mais triviais.

HN- Quais são as suas expectativas relativamente à edição de 2022 e a um eventual aumento de casos clínicos na área da urologia/andrologia nas próximas edições?

BJP- Considero que a falta de representatividade da Urologia / Andrologia no Comité Científico até à edição deste ano constituía um hiato que agora foi colmatado. A validação científica e divulgação do evento pela Sociedade Portuguesa de Andrologia, Medicina Sexual e Reprodução (SPA) patenteia a importância da temática nesta área. Talvez por ser o primeiro ano de integração da Urologia não houve casos clínicos referentes ao aparelho genital masculino. De qualquer forma a SPA e a MSD estão a trabalhar ativamente para difundir a importância da infeção por HPV e patologia relacionada junto dos especialistas em Medicina do Homem e esperamos, obviamente, um significativo incremento nas próximas edições.

Bruno Jorge Pereira

Consultor em Urologia do Serviço de Urologia do IPO de Coimbra (IPOC)

Professor Convidado e Coordenador do Bloco de Urologia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Beira Interior (FCS-UBI)

Vice-Presidente da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Medicina Sexual e Reprodução (SPA)

Fellow do European Board of Urology (FEBU)

Fellow do European Committee for Sexual Medicine (FECSM)

Pós-Graduado em Medicina Sexual pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa (ULHT)

Competência em Sexologia Clínica pela Ordem dos Médicos

Coordenador dos Consensos em HPV Masculino da Sociedade Portuguesa de Andrologia, Medicina Sexual e Reprodução (SPA)

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