João Brum Silveira: “Todos os hospitais deveriam ter um programa de reabilitação cardíaca”

03/06/2023
Todos os anos mais de 10 mil portugueses sofrem um enfarte agudo do miocárdio, o termo médico para o conhecido “ataque cardíaco”. O impacto na mortalidade e morbilidade é algo que preocupa os especialistas, entre os quais João Brum Silveira. O Coordenador da Campanha “Cada Segundo Conta”, promovida pela Associação Portuguesa de Intervenção Cardiovascular, alerta que cerca de 33% dos portugueses não chama o 112 quando está perante um enfarte. Entre os diferentes alertas, o médico defende um alargamento do programa de reabilitação cardíaca nas unidades hospitalares. 

HealthNews (HN)- O coração é uma bomba muscular incansável que realiza mais de cem mil batimentos por dia. Apesar de ser um dos órgãos mais importantes do ser humano, as doenças cardíacas são o “calcanhar de Aquiles” da Saúde Pública. Porquê?

João Brum Silveira (JBS)- Estas doenças são o resultado de maus hábitos… No caso da ateroesclerose, 90% dos casos é devido à acumulação de placas de gordura nas artérias que, por sua vez, provocam uma diminuição do fluxo do sangue ao miocárdio, reduzindo a passagem de oxigénio e nutrientes. Portanto, apesar do coração ser uma bomba autónoma, é preciso que este seja alimentado. Quando cortamos a “alimentação” ao miocárdio podemos vir a assistir a algum evento cardiovascular.

HN- Quando fala na importância de “alimentar” o coração, fala sobre os cuidados na dieta equilibrada, mas também da importância da prática de exercício físico, correto?

JBS- Sim. Nas doenças cardiovasculares há fatores de risco modificáveis e não modificáveis (o sexo, a idade e o património genético). No que toca aos fatores modificáveis temos o tabagismo, o excesso de peso, a obesidade, o sedentarismo e a má alimentação. Infelizmente, há uma percentagem muito significativa de doentes que sabe que tem estes fatores de risco e não os tem controlados. Enquanto as pessoas não se consciencializarem da importância de manter estilos de vida saudáveis, estas patologias vão ser sempre um problema. 

No fundo, as doenças cardiovasculares são doenças da civilização, do estilo de vida moderno, de erros alimentares, de stress e de falta de exercício físico. 

HN- As doenças cardiovasculares são a principal causa de morte a nível global, sendo responsáveis por cerca de 33 mil mortes em Portugal. Que tipo de estratégias ainda não foram adotadas e que para si poderiam servir como “travão” no número de óbitos?

JBS- As estratégias passam pela prevenção primária (evitar que as pessoas desenvolvam estas doenças ) e secundária (evitar que os doentes que têm a doença voltem a ter novos eventos e piorem o seu prognóstico). Tem que haver também uma maior aposta nas campanhas de sensibilização. Tem que se fomentar os ganhos em saúde de uma alimentação saudável e de um peso equilibrado. Isto tem um forte impacto na qualidade de vida dos doentes, assim como nas poupanças de fundos públicos. Infelizmente, verificamos que essas iniciativas surgem de forma esporádica. É preciso que, a nível central, estes assuntos sejam tratados… A Direção-Geral da Saúde tem que ter um papel mais ativo. Em Portugal, são gastos milhões de euros no tratamento destas doenças mas, no que toca à prevenção, o investimento é quase nulo. 

HN- Ainda sobre as medidas a adotar, a via verde coronária não deveria ser alargada a mais hospitais? Há evidência de que estas ferramentas contribuem para a diminuição da mortalidade e morbilidade…

JBS- Esta via foi criada em 2007 sob a presidência de Ricardo Seabra Gomes quando este era coordenador nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares. A rede teve como objetivo preparar o sistema para tratar estes doentes em tempo “útil”. A via verde coronária cobre 21 hospitais públicos, 24 h/dia/7 dias/semana, mas há zonas do país onde deveria haver mais aproximação a esta rede. Estamos a falar da Covilhã, da Guarda e Castelo Branco. De qualquer forma, a cobertura dos cuidados do enfarte agudo do miocárdio é nacional e está bem feita. Para entrar no sistema é preciso que os doentes liguem para o 112 onde é feita uma checklist dos sintomas. Quando se está perante uma vítima de um enfarte é enviada uma ambulância e, dependendo da zona onde o doente se encontra, faz-se o encaminhamento para um hospital com capacidade para o tratar. 

HN- O tempo pode ser um grande inimigo no prognóstico de uma vítima com um enfarte agudo do miocárdio, já que um pequeno atraso no diagnóstico e tratamento pode resultar na morte do doente. Então, por que razão mais de um quarto das pessoas não chama o 112 nestas situações?

JBS- Infelizmente, perto de 33% das pessoas dirige-se ao hospital pelos seus próprios meios. Isto cria um problema muito grave no que diz respeito ao transporte secundário. O INEM é responsável unicamente pelo transporte pré-hospitalar… Se fizer o transporte inter-hospitalar, o INEM depois fica sem meios. Portanto, tendo já uma rede formada, seria importante que aumentássemos o número de doentes a entrar pela rede via verde coronária. 

Sobre as razões que levam a essa falha no contacto com os serviços de emergência também gostaria de saber quais é que as justificam. De qualquer modo, penso que tem que haver mais campanhas. Porquê é que isto não se faz? Isto é um problema da Direção-Geral da Saúde… Há uma grande falta de sensibilidade para estas questões.  

HN- Como é que se deteta a olho nu um doente à beira de um enfarte?

JBS- Os sintomas são muito típicos. Geralmente o doente tem uma dor no meio do peito ou no lado esquerdo. Esta dor surge normalmente em repouso, provocando a sensação de aperto,  moedeira, queimor  ou ardor. Ao contrário da angina de peito, a dor do enfarte agudo do miocárdio é muito intensa. Quando questionamos os doentes para classificarem a dor numa escala de 1 a 10 a resposta é geralmente 9 ou mesmo 10. Esta dor pode estender-se para o pescoço e para a região da mandíbula, assim como também para as costas e para o braço esquerdo. Portanto, todos estes sintomas são sugestivos de um enfarte agudo do miocárdio. 

HN- Mas há uma outra série de sintomas sugestivos e que muitas vezes são confundidos com outras patologias… 

JBS- Sim, é verdade. Essa será sempre uma luta que vamos ter. Nos doentes mais jovens e nos mais idosos, geralmente algumas das manifestações não são as típicas. É por isso que nestes doentes deve ser feito um eletrocardiograma.

HN- O enfarte do miocárdio mata, em média, 12 pessoas por dia. Como classifica a referenciação e o acompanhamento médico destes doentes no pós-enfarte?

JBS- Há uma boa cobertura de referenciação a nível nacional, sobretudo nas grandes cidades. Apesar disso, há zonas como a Covilhã em que o cenário é mais cinzento, uma vez que é mais difícil tratar um doente com um enfarte em menos de duas horas num centro especializado. Infelizmente isto é um problema político… De qualquer forma, considero que a rede funciona bem, mas é preciso ser otimizada e saber o que se passa em determinadas zonas porque os problemas do Porto não são os mesmo que numa cidade mais pequena. 

HN- Em Portugal, apenas alguns hospitais possuem centro especializado de reabilitação cardíaca. Como olha para esta realidade?

JBS- Todos os hospitais deveriam ter um programa de reabilitação cardíaca, de modo a que todos os doente tivessem acesso ao acompanhamento de cardiologistas, nutricionistas, psicólogos e fisioterapeutas. Por outro lado, seria importante que estes doentes tivessem um maior acesso às consultas de cessação tabágica. 

Se este trabalho, que fazemos no laboratório da Hemodinâmica, não tiver uma continuidade, podemos assistir a consequências graves. Portanto, temos que olhar para o doente como um todo, de modo a evitar o agravamento do seu estado de saúde. 

HN- Que mensagem deixa no âmbito do Dia Nacional do Doente Coronário?

JBS- É preciso reconhecer que a doença coronária é um problema sério em Portugal e, portanto, é preciso que haja mais campanhas em massa de prevenção primária e secundária. Por outro lado, é fundamental que todos os hospitais que façam tratamento ao enfarte agudo do miocárdio tenham um programa de reabilitação para que possamos diminuir a carga económica e social destas doenças. 

Entrevista de Vaishaly Camões

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