Saúde e Democracia
The Good, the Bad and the Ugly

09/15/2023
por Luís Gouveia Andrade
Médico Oftalmologista | Grupo Lusíadas Saúde | Director Geral da InfoCiência

Eis um tema seguramente fascinante, terreno para reflexões e controvérsias sem fim.

A saúde das populações engloba um sem número de variáveis: os recursos disponíveis, as opções políticas que podem ou não aumentar esses recursos, a literacia em saúde, as iniciativas da Sociedade Civil e das instituições privadas, o sentimento de justiça e de ética reinante em cada país, a maior ou menor relevância dos grupos de pressão (Sociedades, Ordens), entre tantas outras.

Os regimes democráticos estão por definição mais bem preparados para lidar com uma área tão sensível quanto a prestação de cuidados de saúde aos seus cidadãos e alguns estudos demonstram que assim é, sendo os indicadores globais de saúde globalmente mais positivos quando comparados com os obtidos em regimes autocráticos.

Embora a afirmação anterior pareça fácil de aceitar e não suscite grande celeuma, a realidade demonstra que, pela sua própria natureza, a democracia abre as portas a um conjunto de factores que podem prejudicar o acesso à saúde e à equidade dos cuidados prestados, bem como criar brechas éticas difíceis de reparar no acesso a esses cuidados.

Começamos logo pelos recursos disponíveis. A saúde é cara e será tendencionalmente cada vez mais cara. Poder responder a todas as necessidades em tempo útil, tanto no domínio do diagnóstico como do tratamento, é um quebra-cabeças sem fim e nunca existirá uma solução unânime. Muitas vezes, o custo do tratamento diário de um único doente permitiria tratar dezenas ou centenas de doentes com condições mais simples mas igualmente incapacitantes. As doenças raras são muitas vezes incuráveis e os tratamentos disponíveis, mesmo sem serem curativos, têm preços astronómicos e os governos têm uma enorme dificuldade em gerir aquilo que dificilmente o é, por saberem que cada opção em prol de um doente ou conjunto de doentes pode comprometer muitos outros. Sendo um chavão que não existem doentes de primeira ou de segunda, a realidade é que a natureza limitada dos recursos implica a tomada de decisões e de opções que irão sempre colidir com o direito inalienável à saúde de todos nós.

Por outro lado, a liberdade de expressão, tão cara às democracias, o acesso à internet, tornaram-se uma enorme fonte de problemas e de desinformação. O fenómeno das fake news afasta muitos doentes dos medicamentos, das vacinas, cria verdadeiras correntes de medo e interfere com uma boa gestão dos cuidados de saúde, implicando atrasos de diagnóstico e de tratamento com os inevitáveis custos em produtividade, tempo de vida, qualidade de vida e, e de novo, económicos.

Em situações de crise, como a pandemia pelo Covid-19 tão eloquentemente demonstrou, a necessidade de tomada de decisões no plano internacional, envolvendo países e governos com visões tão distintas entre si, gerou discussões mais arrastadas, com perda preciosa de tempo, com avanços e recuos sucessivos e com a adopção de medidas não raramente inconstitucionais e que, procurando proteger uns, acabaram por deixar de fora tantos outros que viram a sua saúde comprometida e a sua vida irreversivelmente encurtada.

Numa outra perspectiva, sendo um governo democraticamente eleito, as suas medidas na saúde e em tudo o resto, obedecem demasiadas vezes aos ciclos eleitorais e não aos momentos em que seriam verdadeiramente relevantes.

Os exemplos podiam multiplicar-se.

Estive na semana passada em Abu Dhabi. Ainda nessa altura não sabia que iria preparar este texto, mas tinha já conversado com mais de duas dezenas de pessoas das mais variadas origens (Itália, Holanda, Chile, Filipinas Paquistão, etc). Sem excepção, os cuidados de saúde foram apontados como equitativos, de qualidade e, sobretudo, eficazes. A própria pandemia foi utilizada como exemplo, tendo sido implementado rapidamente um sistema de diagnóstico e de vacinação que incluiu toda a população a custo zero. E, provavelmente, grande parte da velocidade desta resposta derivou da existência de um fluxo financeiro generoso mas também de um processo de decisão muito mais centralizado, muito menos pulverizado e muito mais rígido.

Significa isto que os regimes autocráticos permitem respostas melhores no que se refere à saúde? Em alguns casos, sim, sem dúvida.

Significa isto que os regimes democráticos têm mais dificuldade em implementar um modelo de prestação de cuidados de saúde, universal, justo e equitativo? Em muitos casos a resposta continua a ser afirmativa.

Como ficamos então?

A saúde não tem preço, mas tem um custo. A democracia, sendo nas palavras de Winston Churchill, o pior dos regimes à excepção de todos os outros, encerra em si mesma inúmeras falhas que, quando toca à saúde, podem ter consequências fatais. Ninguém duvida que muitas pessoas morreram durante e após a pandemia como consequência de decisões erradas…

A resposta para podermos ter uma melhor saúde em democracia passará, inevitavelmente, por um maior rigor, uma maior disciplina e pela existência de algoritmos de decisão mais estreitos e fáceis de implementar. O tempo que medeia entre o verbo e a acção tem de ser menor. O combate à desinformação e o investimento em literacia terão de ser reforçados.

Como me disse uma das pessoas com quem conversei em Abu Dhabi: “existem decisões que não podem esperar. E aqui elas não esperam”.

Talvez, no fundo, do que realmente precisamos é de líderes que, imbuídos de um espírito democrático e amantes da liberdade, saibam tomar em mãos os diferentes processos em curso e, num constante fluxo de comunicação aberta, franca mas firme, decidam os passos que podem e devem ser dados.

A democracia, como o filme de Sergio Leone, tem o bom, o mau e o vilão. Mas, do mesmo modo que o filme, a democracia é um marco na nossa vida. Que ela perdure, que resista aos ares dos tempos e que possa dar-nos a todos mais e melhor saúde.

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