Manuel Cardoso: “A lei existe para proteger os mais jovens porque o álcool é demasiado tóxico”

31 de Dezembro 2023

“Nós não queremos passar ao jovem a ideia de que é proibido. Não é o proibido que deve estar em causa. É o risco para a saúde. Essa é a mensagem. A lei existe para proteger os mais jovens porque o álcool é demasiado tóxico”, disse ao HealthNews Manuel Cardoso, vogal do novo Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD).

A tradição é começar o ano de copo na mão. Em Portugal, aliás, a bebida alcoólica é regra nos convívios, nas celebrações, dos jovens aos mais velhos. O HealthNews perguntou ao médico Manuel Cardoso por que o álcool é “romantizado” em Portugal. “É muito tolerado. Mesmo o consumo excessivo é muito tolerado pela comunidade. Porque nós também temos um país de produtores. Quase todos os concelhos do país produzem vinho”, respondeu.

Beber antes dos 18, ou “até antes dos 21”, “é muito mais prejudicial à saúde”. “E quanto mais cedo iniciam os consumos, mais cedo vêm as patologias, quer a dependência, quer as cirroses hepáticas, quer qualquer um dos cancros.” “Existem vários cancros que têm uma relação. Trinta por cento de cada um desses cancros, à volta disso, são causados pelo consumo de álcool: orofaringe, laringe, esófago, colorretal, mama. As pancreatites, até doenças infeciosas, como a tuberculose, a infeção VIH, têm relação – são infeciosas, mas são facilitadas pelo consumo de bebidas alcoólicas. Há mais de 60 patologias associadas ao consumo de bebidas alcoólicas em termos de longevidade”, alertou o especialista, que era subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) desde 2015.

“O álcool é tóxico. E é tóxico em particular para as células do sistema nervoso. Também para as do fígado, mas em particular para o sistema nervoso. E é por isso que nós limitamos a idade para vender bebidas alcoólicas ou beber. Porque o sistema nervoso central ainda está muito imaturo. Por exemplo, se a mulher grávida intoxicar o feto com álcool, ele pode ter problemas graves à nascença, pode ter malformações, pode sair com deficiência intelectual, montes de problemas associados à bebida durante a gravidez”, continuou o médico de Saúde Pública, preocupado também com doenças como a cirrose hepática (em Portugal, à volta de 70% das cirroses hepáticas diagnosticadas são por consumo de bebidas alcoólicas) e a dependência alcoólica e com as consequências nefastas imediatas, de que são exemplo as relações sexuais desprotegidas, a violência e os acidentes de viação. “É uma substância psicoativa. Portanto, a quantidade de álcool que bebe vai, em primeiro lugar, afetar o seu estado psíquico, a sua consciência, a sua capacidade para decidir conscientemente.”

“Se [bebeu e] vai pegar num carro, tem muito menos capacidade de reação e tem, por outro lado, a tal desinibição. Não vê risco em comportamentos que noutras circunstâncias veria. (…) Quanto mais novo, maior é o efeito. E nas mulheres é mais ainda. Porque biologicamente homens e mulheres são diferentes, a capacidade de metabolização da bebida alcoólica é diferente (…), os efeitos são diferentes, são mais graves na mulher. A mesma quantidade é mais grave na mulher que no homem.”

Mas as mulheres estão a beber cada vez mais. O relatório “Comportamentos Aditivos aos 18 anos: consumo de substâncias psicoativas”, que resultou de um inquérito a 135.273 jovens no Dia da Defesa Nacional em 2022, mostra que, pela primeira vez, as raparigas ultrapassaram os rapazes no consumo de bebidas alcoólicas nos dozes meses anteriores. Não foi uma surpresa para Manuel Cardoso (“estaríamos à espera que acontecesse pela evolução social que tem acontecido, [por] todos os dados que íamos tendo”), mas é um dado relevante. “Vamos ter aumentos de consumo em termos globais porque aumentou fundamentalmente nas mulheres.”

O inquérito no Dia da Defesa Nacional repete-se desde 2015. “Digo que não é surpresa porque os valores de consumos aos 18 anos vão sendo semelhantes. Não somos surpreendidos, por um lado, porque há uma tendência contínua nesses valores altíssimos. A segunda razão é que nós fazemos também um estudo na população escolar e temos também os valores aos 18 anos. É um estudo que é aplicado em vários países da Europa e que nos permite fazer uma comparação de consumos”, informou o médico.

“Aos 18, 20 anos, não lhe acontece nada. É omnipotente. Normal a nossa postura enquanto jovens ser não pensarmos na morte, não pensarmos no risco, na doença. Tudo isso está afastado do pensamento, o que é importante é crescer, é ter autonomia, é ter prazer, é viver o prazer, etc. Genericamente é isso, e ainda bem, não pomos em causa”, referiu o médico. Nessa população, “a perceção de risco existe, tem algum significado em termos percentuais, mas só uma pequena parte dos que dizem ter essa perceção de risco é que depois se comportam de modo compatível. Saber que beber mais que duas bebidas alcoólicas na mesma ocasião tem riscos para a saúde, 40 ou 50% sabem ou dizem que sim, mas quando pergunta se alguma vez beberam mais que duas, ou mesmo quatro ou cinco bebidas, provavelmente a percentagem dos que dizem que sim é maior.”

Jovens e adultos, a grande maioria diz beber por prazer. “O padrão de consumo disperso pela semana e à refeição é menos prejudicial do que um consumo de grandes quantidades, como os jovens fazem mais, em alguns dias da semana. Portanto, em termos de mensagem, se vão mesmo beber, não bebam sem comer, misturem água pelo caminho, para manterem o controlo. Se o objetivo for o prazer e não propriamente a embriaguez”, acrescentou o especialista.

“Nós não queremos passar ao jovem a ideia de que é proibido. Não é o proibido que deve estar em causa. É o risco para a saúde. Essa é a mensagem. A lei existe para proteger os mais jovens porque o álcool é demasiado tóxico. (…) Os vários apagões vão fazendo com que haja cada vez menos capacidade intelectual. E isto é factual”, frisou.

Em Portugal, a maioria dos óbitos são causados por doenças crónicas. “Dessas doenças crónicas, pelo menos 30 a 40% são devidas a comportamento. O primeiro tem a ver com nutrição, o segundo tem a ver com o tabaco e o terceiro é o consumo de álcool. (…) Portugal tem uma esperança de vida à nascença muito significativa, eu diria, bastante acima da média europeia. Mas, depois, quando vamos avaliar a esperança de vida com saúde, ou sem patologias, nós estamos na cauda da Europa. Portanto, há um gap enorme e que estamos convencidos que tem muito a ver com estes comportamentos. Apesar de podermos hoje pensar que o nosso sistema de saúde está com problemas – e é verdade, está –, nós temos um sistema de saúde dos melhores do mundo, que mesmo assim vai dando respostas. Se não tivéssemos o Serviço Nacional de Saúde a dar resposta, estaríamos ainda pior em termos de saúde na longevidade”, disse o médico ao HealthNews.

HN/RA

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ÚLTIMAS

Ordem firme na necessidade de se resolver pontos em aberto nas carreiras dos enfermeiros

O Presidente da Secção Regional da Região Autónoma dos Açores da Ordem dos Enfermeiros (SRRAAOE), Pedro Soares, foi convidado a reunir esta sexta-feira na Direção Regional da Saúde, no Solar dos Remédios, em Angra do Heroísmo. Esta reunião contou com a presença de representantes dos sindicatos e teve como ponto de partida a necessidade de ultimar os processos de reposicionamento que ainda não se encontram concluídos, firmando-se a expetativa de que tal venha a acontecer até ao final deste ano.

APDP apresenta projeto “Comer Melhor, Viver Melhor” no Parlamento Europeu

Uma alimentação que privilegie um maior consumo de produtos vegetais, quando planeada equilibradamente, pode contribuir para melhorar os resultados em saúde nas pessoas com diabetes tipo 2, evidencia o projeto “Comer Melhor, Viver Melhor”, apresentado pela APDP no Parlamento Europeu no passado dia 18 de abril.

MAIS LIDAS

Share This
Verified by MonsterInsights