HealthNews (HN) – Em que consiste o Plano Europeu de Combate ao Cancro?
Sara Cerdas (SC) – O Plano Europeu de Combate ao Cancro foi uma resposta da Comissão Europeia a um dos principais flagelos a nível de saúde na União Europeia. A União Europeia tem cerca de 25% dos casos de cancro de todo o mundo, quando apenas temos 10% da população mundial. É a segunda causa de morte e sabemos que 40 a 50% das mortes por cancro são evitáveis. E há 50% de fatores de risco que desconhecemos.
Tentámos perceber quais são esses 50% e atacar os outros 50% em todas as frentes. Infelizmente, o partido da direita europeia diz-se na vanguarda do combate ao cancro, mas, quando é para legislar nos fatores de risco que já são conhecidos e que têm grande impacto no desenvolvimento de cancro, como o consumo do álcool, tabaco, qualidade do ar, têm sempre uma posição muito pouco abonatória.
A poluição causa 10% dos cancros na União Europeia, legislámos aqui por melhor qualidade do ar, mas o PSD e o CDS votaram contra, por exemplo. Tentámos, também, ter uma abordagem mais baseada na evidência no que concerne ao consumo do álcool. A OMS, como todo o setor da ciência, diz-nos que não existe um consumo mínimo de álcool no que concerne ao desenvolvimento de cancro. Em relação ao tabaco, infelizmente, a Comissão Europeia falhou em apresentar uma revisão do quadro da diretiva 4.
O Plano Europeu de Combate ao Cancro está assente em quatro pilares: prevenção; deteção precoce; tratamento adequado e atempado, independentemente de eu viver na Madeira ou no centro de Paris; e qualidade de vida para os doentes, as suas famílias e os seus cuidadores, algo muito importante e que não estava contemplado nas anteriores propostas.
São cerca de quatro mil milhões de euros para este plano, provenientes de vários programas – o Programa de Saúde, o Programa de Investigação e o Programa do Digital –, que pretende atingir várias métricas, nomeadamente garantir que 90% da população da União Europeia é elegível para o rastreio do cancro da mama, do colo do útero e colorretal já em 2025. São métricas muito importantes e que também se interligam com outras propostas legislativas. Por exemplo, quando lhe falava dos 50% de fatores de risco que ainda desconhecemos, agora temos uma grande investigação científica na União Europeia e, em breve, teremos o Espaço Europeu de Dados em Saúde. Este programa irá permitir o acesso aos dados de saúde de 450 milhões de pessoas, caso os cidadãos permitam e sempre garantindo todas as condições de segurança e confidencialidade. Algo que implica a criação de uma grande base de dados, que permitirá ter mais conhecimento e melhor informação sobre esta grave patologia.
HN – Que obstáculos tem encontrado?
SC – Para mim, como médica da área da Saúde Pública, é uma frustração não termos políticas baseadas na melhor evidência científica, porque a direita não permitiu. Não permitiu que se proibissem sabores atrativos nos novos produtos de tabaco em 2020, não permitiu balizar o consumo de álcool, quando a ciência nos diz que existe uma relação direta entre o consumo de álcool e o cancro. Se não estamos alinhados com a ciência, estamos a retroceder e muito. E estamos a falar de uma doença que tem um grande impacto, não só nos doentes, nas famílias e nos cuidadores, mas também na economia e na sociedade como um todo.
Isto para mim tem sido o principal obstáculo. Porque temos que ser rigorosos na nossa comunicação, tal como a ciência é rigorosa. A direita, liderada pelo grupo do PSD e do CDS, diz que está na vanguarda do combate ao cancro, mas depois as propostas deles não correspondem. Não basta dizer que somos contra uma doença e “atirar” todo o financiamento para o tratamento da doença. Importa prevenir. Se nós prevenirmos, iremos todos poupar muito na doença, na morbilidade e na mortalidade.
HN – Os fatores de risco modificáveis são apontados como principal motivo para a mortalidade no nosso país no Registo Europeu de Desigualdades em Cancro. Desde Bruxelas, como vê Portugal?
SC – Portugal deu largos passos na nova lei do tabaco, que foi aprovada no final da legislatura. Foi uma lei muito contestada, mas que tinha como objetivo proteger a população da exposição ao fumo do tabaco, que sabemos que é um fator de risco muito nocivo e bem documentado. Existem também outros fatores modificáveis, e daí eu ter apelado muito a uma abordagem de saúde em todas as políticas. Ao criar um parque isso vai levar a que as pessoas tenham acesso ao ar livre, algo que sabemos ser um fator protetor da saúde, não apenas para o cancro, mas também para outras doenças não transmissíveis, como as doenças cardiovasculares.
O que podemos fazer do ponto de vista da União Europeia? Nós legislamos para 450 milhões de pessoas, cerca de 70 a 80% da legislação portuguesa advém da legislação europeia, daí a importância de escolhermos muito bem quem é que nos está a representar no Parlamento Europeu. Em relação ao combate ao cancro, onde temos uma linha de ação muito mais ativa é na prevenção primordial, ou seja, a legislar naqueles que são os fatores de risco modificáveis, como seja o consumo de tabaco, o consumo de álcool, os novos produtos que possam ser nocivos, a redução de químicos e a redução de disruptores de endócrinos. Por exemplo, agora estou a regular os brinquedos na União Europeia, nomeadamente regular o tipo de substâncias que os brinquedos podem ter, para retirar tudo o que seja carcinogénico.
Queria também deixar aqui nota da importância de votarmos nas eleições europeias. Quando se fala da União Europeia na televisão, é sempre sobre taxas, Euribor, sobre questões financeiras; pouco se fala sobre o que o eurodeputado está a fazer, por exemplo, para melhorar a qualidade do ar que eu respiro ou pela nossa segurança alimentar. A União Europeia é líder mundial no que respeita à regulamentação, tem um grande quadro legislativo nesse aspeto. Eu costumo dizer que o sítio mais saudável para se viver do ponto de vista de exposição e de consumo é a União Europeia, porque temos um grande quadro regulamentar. Sabemos que vamos a qualquer um dos 27 Estados-membros e podemos beber a água da torneira, é potável. Tudo isto são questões da União Europeia.
HN – Em 2035, o cancro poderá ser a principal causa de morte, ultrapassando as doenças cardiovasculares. O que é que a deixa mais orgulhosa no trabalho que a UE está a desenvolver contra o cancro e, por outro lado, o que é que ainda é preciso fazer?
SC – É uma pergunta que dava para uma tese de doutoramento. Eu dou um exemplo que se calhar ninguém pensa que terá grande efeito, mas irá ter efeito, e nós depois temos capacidade de medir esses indicadores: o regulamento de segurança dos brinquedos. Retirarmos as substâncias disruptoras endócrinas, substâncias alergénicas, bonecas com fragrâncias, que sabemos que podem causar alergias, é um dos muitos exemplos de como a União Europeia trabalha para tornar a nossa vida mais saudável.
Também temos o Espaço Europeu de Dados em Saúde, porque irá gerar uma revolução no acesso aos cuidados de saúde. Imagine: estou em Portugal, parto a perna e depois venho para Bruxelas trabalhar e preciso de ir ao hospital. O Espaço Europeu de Dados em Saúde vai fazer com que eu não tenha de repetir o raio-X que tinha feito em Portugal; o meu médico belga, que fala neerlandês, vai ter acesso ao meu registo clínico na sua língua nativa. Os benefícios serão imensos, em termos de não repetição de exames e de acessibilidade, e todos os dados irão comunicar entre si.
Para um doente com cancro ainda se torna mais relevante. Se eu tenho uma doença oncológica que em Portugal estava em remissão e aqui, na Bélgica, tenho um episódio de maior fadiga e mais anemia, repito as minhas análises, os meus médicos na Bélgica vão conseguir ver todo o meu historial e, possivelmente, guiar melhor toda a minha terapêutica ou o processo médico. Imaginemos que eu tenho um cancro raro e que em Portugal só existem cinco casos dessa doença oncológica. Fazer qualquer estudo terapêutico é muito difícil com apenas cinco doentes. Mas e se juntarmos os dados de 450 milhões de pessoas? Os médicos passam a ter acesso a uma base de dados muito maior.
HN – A pandemia mostrou, de facto, a força de unirmos a Europa, ou o mundo; de trabalharmos além-fronteiras.
SC – Exato. Estamos a trabalhar no novo regulamento de pacote farmacêutico da União Europeia. Por exemplo, 80% do nosso Ben-U-Ron vem da China, da Índia, de outros países, e nós na pandemia ficámos sem Ben-U-Ron. Temos de garantir que a União Europeia é mais sustentável do ponto de vista do uso e do acesso a medicamentos. Estamos a trabalhar para que, se falhar uma Fluoxetina em França e se Portugal tiver stock suficiente, Portugal possa enviar esse medicamento para França. Tudo graças à Estratégia Farmacêutica e ao novo quadro regulamentar que se pretende criar. Passará também a existir uma obrigatoriedade das farmacêuticas terem um controlo do seu stock e de identificar qualquer potencial disrupção na cadeia de produção e de distribuição do medicamento.
HN – Destacaria alguma outra informação ligada ao impacto da poluição e dos problemas ambientais no cancro? O que é que a União Europeia pode fazer mais e o que é que está em causa?
SC – Nós sabemos, de acordo com os dados da Agência Europeia do Ambiente, que a poluição na União Europeia causa 10% dos cancros. Grande parte advém da poluição do ar, mas também de exposição a radiação ultravioleta, por exemplo. Nós podemos regular a exposição ao fumo do tabaco, regular os parâmetros de qualidade do ar. Numa altura em que a maior emergência das nossas vidas é a emergência climática, torna-se ainda mais importante garantir que estamos a trabalhar em diversas frentes, não apenas para prevenir a exposição, mas também mitigar os efeitos das alterações climáticas. Sabemos que, com as alterações climáticas, irá existir uma alteração no padrão de doenças, em especial no que toca ao cancro. Temos aqui uma grande oportunidade para regular a poluição do ar em termos ambientais. O novo regulamento de químicos na União Europeia, que falhou a esta Comissão de Ursula von der Leyen – e esperemos que não falhe na próxima legislatura – irá permitir reduzir a utilização de pesticidas, substâncias que sabemos que têm um grande potencial carcinogénico.
HN – Antes de lhe pedir uma mensagem final para este Dia Mundial do Cancro, gostava que explorássemos um pouco mais os benefícios de acompanharmos a política europeia, tanto para o cidadão como para os eurodeputados. Como é que podemos, por exemplo em Portugal, trabalhar a literacia em saúde e fazer com que isso conduza a uma aproximação à política europeia?
SC – A comunicação social tem um papel muito importante a veicular a mensagem daquilo que fazemos na União Europeia. É importante percebermos aquilo que se passa na UE quando ultrapassamos toda aquela espuma do dia, das dívidas, de financiamentos, etc. Importa perceber, por exemplo, o que significa este novo regulamento da diretiva da qualidade do ar e de que forma é que isso tem impacto nas nossas vidas.
Durante o mandato, procurei sempre ter um grande envolvimento com a sociedade civil e com os diferentes setores, através de eventos, conferências, roteiros, sessões, para explicar o que fazemos na União Europeia. Em 2019, diziam que a Saúde não era uma política europeia. Quando cheguei ao Parlamento Europeu, perguntavam: o que é que está aí a fazer um médico? Veio a pandemia e percebeu-se que a proteção da saúde pública é uma competência partilhada entre a União Europeia e os Estados-membros. Estamos a falar de promoção da saúde, prevenção da doença e garantir a qualidade de vida a todos aqueles que vivem na União Europeia. esse é ainda um grande caminho a fazer.
É importante termos bons representantes no Parlamento Europeu e, acima de tudo, representantes que contribuam para uma integração europeia. Tal como [Robert] Schuman disse, o projeto europeu é um projeto em constante desenvolvimento. Se me perguntar se em 2019 eu alguma vez pensaria estar onde estou em 2024, a dizer-lhe que temos um Plano Europeu de Combate ao Cancro, temos um Programa Europeu de Saúde que aumentou 10 vezes o seu financiamento, que iremos ter um Espaço Europeu de Dados em Saúde, que temos melhores condições para vigilância epidemiológica e melhor preparação para futuras ameaças transfronteiriças… se calhar não lhe responderia a nada disso. Mas essa é a parte bonita da União Europeia.
HN/RA
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