António Ricardo Miranda Associação OUVIR

O futuro está a chegar, mas olhamos para trás: a era da nostalgia digital

05/06/2025

Vivemos um paradoxo fascinante: estamos a atravessar uma revolução tecnológica sem precedentes, impulsionada pela inteligência artificial, realidade aumentada, biotecnologia e um universo digital em expansão, mas ao mesmo tempo, assiste-se a um retorno simbólico e afectivo ao passado. Como explicar que, em pleno século XXI, ressurgem com força ideias de imperialismo, fé religiosa tradicional, prisões como Alcatraz, e até fantasias de ressuscitar dinossauros? Este movimento não é apenas curiosidade histórica; é um sintoma de algo mais profundo: a ansiedade colectiva perante um futuro incerto e a tentação de refugiar-se na ilusão de um passado glorioso e seguro.

Este saudosismo, que se reveste de várias formas e discursos, pode ser chamado de retrotopia, um termo cunhado pelo socólogo Zygmunt Bauman. Em vez de projectarmos utopias no futuro, recuamos a um tempo idealizado, ignorando os aspectos mais sombrios desse passado. É a ideia de que já fomos grandes, justos, puros, e que a chave para o progresso é, paradoxalmente, o retrocesso.

Na política, este fenómeno está particularmente visível. O ex-presidente norte-americano Donald Trump propôs, em discursos públicos, a reativação da prisião de Alcatraz, um símbolo de punição exemplar e autoridade inabalável. Mais ainda, Trump promoveu a ideia de um regresso aos “valores cristãos fundacionais”, uma missão quase messiânica de salvar os EUA de um colapso moral e multicultural. Esta visão não é exclusiva da América. Na Europa, Viktor Orbán, na Hungria, defende um Estado iliberal que exalta a identidade cristã europeia, rejeitando valores liberais, o multiculturalismo e os direitos LGBTQ+ como ameaças à “ordem natural”.

o Brasil, Jair Bolsonaro encarnou um discurso semelhante: evocou a ditadura militar como um período de ordem e progresso, aliando-se a igrejas evangélicas e promovendo um ideal patriarcal e religioso de nação. O saudosismo é aqui uma arma ideológica, uma promessa de redenção através da revisitação do passado.

Este impulso também invade o campo cultural. Em pleno auge da IA generativa, da deepfake e da produção digital, há uma obsessão com a estética vintage, o renascimento de hábitos antigos e o ressurgimento de valores religiosos tradicionais. Jovens europeus e norte-americanos, paradoxalmente conectados 24/7, estão a redescobrir a missa em latim, a aderir a comunidades católicas conservadoras e a consumir conteúdo de influenciadores religiosos nas redes sociais. A tradição torna-se contra-cultura, e a fé, um acto de rebeldia face ao relativismo moderno.

A cultura popular reforça essa tendência. Séries como The Crown, Downton Abbey ou Gladiador 2 projectam uma narrativa onde o passado, com as suas hierarquias sociais e morais bem definidas, parece mais belo, mais nobre, mais coerente. O cinema continua a reinventar impérios, reis e cavaleiros, ao mesmo tempo que os algoritmos decidem o que vemos. Vivemos no futuro, mas consumimos mitos do passado.

Esta retrotopia tem também um lado perigosamente revisionista. Vários países tentam reescrever os manuais escolares para suavizar ou glorificar o passado colonial. No Reino Unido, o legado do Império Britânico é muitas vezes apresentado como uma missão civilizadora. Em Portugal, ainda há quem fale dos Descobrimentos com uma aura de heroísmo incontestado, ignorando a violência da escravatura ou da exploração colonial. Na Índia, o governo nacionalista de Modi procura apagar influências islâmicas da história oficial para reforçar uma identidade hindu “pura”.

Tudo isto ocorre enquanto o mundo se transforma a uma velocidade vertiginosa. A inteligência artificial já escreve textos, compõe músicas, conduz carros e avalia candidatos a emprego. A biotecnologia propõe ressuscitar espécies extintas, como o mamute-lanoso, e até projectos de trazer dinossauros estão em discussão. Não é de estranhar que esta aceleração cause vertigem. O ser humano reage, muitas vezes, não com entusiasmo, mas com medo. E onde há medo, procura-se conforto. O passado fornece esse conforto. É conhecido, ordenado, “seguro”.

Mesmo nos momentos de crise, como os apagões eléctricos, vemos um fenómeno curioso: as pessoas saem à rua, falam com os vizinhos, olham para o céu. A ausência de tecnologia reaproxima-as. Isto revela um desejo profundo de reconexão humana que a tecnologia, apesar de todas as suas promessas, não tem conseguido satisfazer.

Estamos, portanto, perante uma encruzilhada civilizacional. A tecnologia avança, mas a cultura vacila. Regressar ao passado não é por si só problemático. Há lições, valores e narrativas importantes a resgatar. O perigo está em romantizar esse passado, em ignorar as suas falhas, em usá-lo como arma ideológica. O futuro precisa de memória, mas também de coragem para imaginar o novo.

Precisamos, mais do que nunca, de uma narrativa que integre progresso tecnológico com empatia, memória histórica com espírito crítico, e fé — se for o caso — com humanidade. A solução não está em escolher entre passado ou futuro, mas em reconciliá-los de forma honesta e criativa.

Prque, afinal, o futuro está a chegar. E é urgente que, quando ele bater à porta, estejamos a olhar em frente. Não para trás.

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