HealthNews (HN) – Desde os seus primórdios, a Marca Azevedos conta com mais de dois séculos de história (250 anos). Como é que essa tradição influenciou a evolução da empresa?
Thebar Miranda (TM) – A história da marca remonta a uma pequena botica em Lisboa, no Rossio, em 1775, fundada por um frade Dominicano, que trabalhava antes do terramoto, no Hospital de Todos os Santos, onde já fazia preparados medicinais. Ao longo dos anos, esta atividade acompanhou o desenvolvimento desses preparados medicinais, correspondendo às necessidades crescentes da melhor saúde para as populações e a evolução tecnológica que conduziu à noção e definição atual do medicamento. Esta botica que evoluiu para a designação de farmácia associou-se a outra farmácia no século XIX, no sentido de melhorar a oferta dos medicamentos que produziam. Estas duas farmácias tinham na sua designação social o nome Azevedo, o que originou a Marca Azevedos (no plural) para os produtos que produziam.
A atividade desta sociedade de farmácias alargou a noção de disponibilidade e acessibilidade dos medicamentos, que conduziu à complementaridade de fabrico, distribuição, e retalho de medicamentos, com o conceito já atual do circuito farmacêutico.
Na segunda década do século XX, constituiu-se a Sociedade Industrial Farmacêutica, cuja atividade passou a abranger todos os setores do circuito do medicamento, que foi até aos anos 80, o maior operador farmacêutico em Portugal.
A longevidade da Marca Azevedos deve-se à capacidade de equilibrar tradição e modernidade. Preservamos a ética do “fazer bem”, herdada dos fundadores, enquanto abraçamos tecnologias como inteligência artificial e plataformas de produção automatizadas. Investimos em I&D para desenvolver novos produtos (como formulações injetáveis de alta precisão) e mantemos um diálogo próximo com parceiros globais, garantindo que a nossa herança centenária continue a ser sinónimo de confiança e excelência.
Em suma, a tradição não é um peso, mas um farol que ilumina o caminho para o futuro. Cada etapa da nossa evolução — da botica de Lisboa às fábricas inteligentes — foi construída sobre alicerces de qualidade, adaptabilidade e respeito pelo paciente. São esses valores, cultivados ao longo de mais de dois séculos, que nos permitem enfrentar os desafios do século XXI com a mesma determinação dos que nos antecederam.
(HN) – Nos anos 60, houve uma mudança significativa na produção de medicamentos. Como é que a Marca Azevedos se adaptou à mudança?
TM – Nos anos 60, a Marca Azevedos enfrentou um período de transição crítica na indústria farmacêutica portuguesa, marcado pela necessidade de modernização e regulamentação mais rigorosa. Para nos adaptarmos a essas mudanças, implementámos uma série de estratégias estruturais e operacionais.
Em resposta à pressão para industrializar a produção de medicamentos, inaugurámos em 1964 os Laboratórios Azevedos, um departamento industrial dedicado à fabricação em escala. Este projeto representou a transição de processos artesanais (comuns nas farmácias) para métodos industriais, com equipamentos mais avançados e linhas de produção organizadas. A iniciativa visava garantir padrões de qualidade alinhados com as exigências emergentes, tanto nacionais quanto internacionais.
Embora os laboratórios permanecessem vinculados à Sociedade Industrial Farmacêutica (entidade-mãe do grupo), ganharam autonomia operacional. Essa separação permitiu maior especialização na produção, com o foco em medicamentos padronizados e na otimização de processos, como embalagem automatizada, que substituiu técnicas manuais.
(HN) – E depois veio o 25 de Abril de 1974…
TM – Após a Revolução de 1974, o setor farmacêutico enfrentou novas dinâmicas políticas e económicas. Em 1985, consolidámos a independência jurídica e surgiram os Laboratórios Azevedos – Indústria Farmacêutica, S.A., transformando-os numa entidade autónoma. Essa medida reforçou a capacidade de investir em tecnologia e em cumprir normas europeias, que começavam a ganhar relevância com a aproximação de Portugal à Comunidade Económica Europeia.
(HN) – Quais foram os principais desafios no processo de internacionalização do grupo?
TM – A partir dos anos 80, intensificámos a internacionalização, inicialmente na Europa (particularmente em França) e, posteriormente, em mercados africanos como Marrocos, Moçambique e Angola e na América Latina (Brasil). Essa expansão não apenas ampliou a nossa base de clientes, mas também nos obrigou a adotar padrões técnicos mais elevados, como a certificação de bioequivalência para genéricos, antecipando regulamentações futuras. Moçambique destacou-se como um mercado estratégico devido à estabilidade política e à necessidade de infraestrutura farmacêutica local. Dito isto, importa salientar que, em Moçambique, o grupo enfrentou obstáculos logísticos, como estradas precárias e distribuição em áreas remotas, resolvidos com a criação de centros regionais para entregas rápidas. Em Moçambique, o grupo lidera o mercado farmacêutico através da Medis Azevedos, garantindo entregas em 24 a 48 horas no máximo, apesar das infraestruturas precárias. Já no Brasil, o projeto fracassou devido à burocracia e à complexidade do mercado.
(HN) – Mais de 90% da produção do Grupo Azevedos é destinada à exportação. Como atingiram essa posição?
TM – Atingir a posição em que mais de 90% da nossa produção é destinada à exportação resultou de uma combinação de fatores, desenvolvidos ao longo de décadas de adaptação, inovação e visão de longo prazo.
A aquisição de uma nova fábrica em 1994, equipada com tecnologia de ponta, permitiu-nos competir globalmente, especialmente na Europa. Investimos continuamente em plataformas tecnológicas avançadas, como linhas de produção robotizadas e sistemas de controlo de qualidade, essenciais para cumprir normas internacionais rigorosas.
A adesão às normas europeias foi prioritária. Implementámos sistemas de gestão de qualidade alinhados com as Boas Práticas de Fabricação (GMP), garantindo que os nossos medicamentos fossem aceites em mais de 90 países. A pandemia de COVID-19 destacou a importância de cadeias de suprimentos resilientes: mantivemos fornecedores certificados e priorizámos contratos de longo prazo, assegurando entregas pontuais mesmo em crises.
Chegar a 90% de exportação foi um processo evolutivo, sustentado por investimento em tecnologia inteligente, expansão geográfica, e compromisso com a qualidade. Hoje, o Grupo Azevedos não é apenas um fabricante, mas um parceiro global em saúde, com presença em mais de 80 países e uma reputação construída em décadas de rigor e inovação. O futuro passa por consolidar mercados existentes e explorar novas oportunidades em terapias biológicas e medicamentos personalizados, sempre alinhados com a nossa missão: “Fazer bem, para fazer o bem”.
(HN) – Os medicamentos genéricos enfrentaram resistência inicial. Depois, foram adotados como opções válidas e mais económicas. Como avalia essa mudança de mentalidade?
TM – Os medicamentos genéricos, que são versões mais baratas de fármacos de marca após o término das patentes, enfrentaram uma resistência significativa em Portugal, especialmente nas décadas de 1990 e 2000. Esta resistência foi amplamente fomentada por campanhas de desinformação lideradas por empresas de fármacos inovadores, que rotulavam os genéricos como “lixo” e espalhavam dúvidas sobre a sua segurança e eficácia. Mesmo entre Farmacêuticos e Médicos, incluindo os respetivos líderes fazia curso a ideia de que os genéricos não eram equivalentes aos fármacos originais e poderiam causar reações adversas graves, uma afirmação que mais tarde se provou infundada.
A mudança de mentalidade foi impulsionada por uma combinação de fatores regulatórios, científicos e económicos. Em primeiro lugar, a regulamentação tornou-se mais rigorosa, exigindo provas de bioequivalência, ou seja, que os genéricos têm a mesma biodisponibilidade e efeito terapêutico que os fármacos de marca. Esta exigência foi crucial para construir confiança. Foi introduzida regulamentação muito mais exigente para provar que, em termos terapêuticos, eram exatamente iguais aos medicamentos de marca”. Estudos científicos subsequentes confirmaram esta equivalência, ajudando a dissipar mitos sobre a inferioridade dos genéricos.
Por fim, fatores económicos desempenharam um papel crucial. Com os genéricos a serem significativamente mais baratos, os consumidores começaram a preferi-los, especialmente em tempos de pressão financeira. Hoje, é comum ouvir-se em farmácias que os clientes pedem genéricos porque “são mais baratos, por isso não querem saber da marca”, sabendo que “os medicamentos fazem o efeito que têm de fazer sob controlo”. Esta mudança reflete uma aceitação generalizada de que os genéricos são confiáveis e uma opção padrão, alinhada com as necessidades económicas da população.
(HN) – Como é que as crises internacionais impactaram o setor farmacêutico e o Grupo Azevedos?
TM – As crises internacionais têm tido um impacto significativo no setor farmacêutico, e o Grupo Azevedos não foi exceção. Ao longo das últimas décadas, enfrentámos desafios decorrentes de mudanças regulatórias, tensões geopolíticas e, mais recentemente, a pandemia de COVID-19. Cada uma destas crises trouxe lições e exigiu adaptações estratégicas para garantir a resiliência do nosso grupo.
O Brexit introduziu incertezas regulatórias, especialmente no que diz respeito à harmonização de normas entre o Reino Unido e a União Europeia. Apesar das preocupações iniciais, o Grupo Azevedos já operava sob rigorosos padrões de qualidade, o que facilitou a adaptação. Contudo, o excesso de regulamentação na Europa tem pressionado a inovação e aumentado custos, exigindo investimentos contínuos em tecnologia e processos para cumprir exigências técnicas sem comprometer a competitividade.
A pandemia evidenciou a importância crítica da cadeia de suprimentos farmacêuticos e a necessidade de autossuficiência estratégica. Durante este período, reforçámos a nossa capacidade de resposta, assegurando a continuidade da produção e distribuição de medicamentos, mesmo face a interrupções globais. A dependência de componentes importados, sobretudo de países como a China e a Índia, tornou-se um ponto de atenção, destacando a necessidade de parcerias confiáveis e diversificação de fornecedores. O Grupo Azevedos manteve-se estável graças a uma cadeia logística robusta e a compromissos firmes com clientes e parceiros, garantindo que os medicamentos chegassem aos mercados prioritários sem falhas.
As guerras tarifárias, sobretudo entre os EUA e a China, poderão afetar indiretamente o setor. Embora os medicamentos geralmente tenham tarifas baixas, a escalada de protecionismo comercial levantou receios sobre a estabilidade das cadeias globais. O Grupo Azevedos tem mitigado esses riscos focando-se em mercados consolidados.
Finalmente, no presente, o grupo reconhece os riscos associados a tensões geopolíticas e tarifas comerciais, como as impostas pelos EUA. No entanto, aposta em relações sólidas com parceiros europeus e na reputação de qualidade dos seus produtos. Para minimizar vulnerabilidades, evita mercados voláteis e concentra-se em países com regulamentos estáveis. Além disso, diversificou os fornecedores de Intermediários Farmacêuticos Ativos e mantém auditorias rigorosas. Como referi atrás, a estratégia inclui a produção de medicamentos especializados, que são menos suscetíveis a flutuações de preço, garantindo margens sustentáveis mesmo em cenários protecionistas.
(HN) – Quais são os projetos futuros para o Grupo Azevedos?
TM – O Grupo Azevedos tem uma estratégia bem definida para o futuro, assente no desenvolvimento tecnológico, na inovação farmacêutica e na consolidação da sua presença nos mercados internacionais.
A nível de investigação e desenvolvimento, a aposta centra-se no aperfeiçoamento das tecnologias farmacêuticas, com especial enfoque na criação de novas formulações e na melhoria das propriedades das moléculas existentes. O objetivo é oferecer medicamentos mais eficazes, seguros e estáveis, garantindo maior precisão terapêutica e melhor qualidade de vida para os pacientes. A empresa tem vindo a reduzir o número de produtos genéricos tradicionais e a focar-se cada vez mais na diferenciação tecnológica, particularmente no segmento dos medicamentos injetáveis, onde detém um elevado grau de especialização.
Outro pilar fundamental da estratégia de crescimento do Grupo Azevedos é a modernização das suas unidades industriais. O objetivo é continuar a digitalização e automatização das plataformas de fabrico, reduzindo a intervenção humana em processos críticos e garantindo níveis de qualidade e segurança ainda mais elevados. A inteligência artificial já desempenha um papel essencial na otimização da produção, sendo que a meta para os próximos anos é alcançar um nível de automação e eficiência sem precedentes.
No que respeita à internacionalização, a prioridade não é a expansão massiva para novos mercados, mas sim a consolidação da presença em regiões estratégicas onde a empresa já atua. Moçambique continua a ser um dos principais mercados para o Grupo Azevedos, onde detém uma posição de liderança no setor farmacêutico. A empresa também mantém uma forte presença na Europa, nomeadamente através de parcerias estratégicas para a produção de medicamentos para terceiros. O mercado dos Estados Unidos é outra aposta futura, estando a ser preparados produtos especializados para a entrada neste exigente setor.
O Grupo Azevedos continuará a reforçar o seu compromisso com a inovação e a qualidade, garantindo que os seus medicamentos cumprem os mais altos padrões internacionais e respondem às necessidades de saúde da população. A estratégia futura passa por consolidar a empresa como um dos principais fabricantes farmacêuticos europeus, destacando-se não pela escala, mas pela excelência e diferenciação tecnológica.
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