Os tempos mostraram que as alterações climáticas não apareceram nem por acaso, nem de modo isolado.
O paradigma das doenças crónicas não transmissíveis como principal preocupação em Saúde e, também como primordial no conjunto das causas de mortalidade, foi quebrado subitamente com o SARS-Cov-2.
Mesmo o facto de esta infecção parecer estar muito relacionada com o envelhecimento, demonstrou que a epidemia – depois pandemia – não atingiu apenas os indivíduos que atingiu. Ou seja, houve de forma chocante e inédita um alastramento ao plano social e globalmente, com paralisações das actividades escolares e laborais, novas formas de organização do trabalho e dos apoios sociais, disrupções nas cadeias de distribuição e de produção (em parte pela deslocalização gananciosa e sem visão de longo prazo), agravamento do quadro de saúde mental e maior isolamento dos mais velhos e de todos os outros em geral.
Os sistemas de saúde pública aguentaram como puderam mas não disfarçaram, nem o poderiam fazer, dois problemas estruturais graves que, em português diria, terem sido como se apanhados de calças nas mãos:
– O primeiro, o de um sistema organizativo concebido há muitas décadas para um atendimento preferencial de quadros agudos e já não tanto infecto-contagiosos;
– O segundo, o de um esforço de transição em curso para a melhoria da chamada patient journey no âmbito das doenças crónicas.
No fundo, o Mundo assistiu, atónito e esmagado pelo peso da informação transmitida pela comunicação social a um verdadeiro festival de, acho, representações sociais duma doença contagiosa, excepcionalmente contagiosa, cujo desfecho evolutivo se temia e ignorava.
As pessoas sentiram-se violentadas entre um contexto de doenças crónicas, degenerativas e nas quais, o receio das complicações se associa ao objectivo de rastreios e de medidas preventivas e terapêuticas, e um panorama brutal de uma infecção vírica, ambígua e para a qual tudo o que foi sendo dito e ditado resultou de improvisos, estimativas e navegação à vista, com um desejo de se permanecer livre do contágio e vivo.
A novidade passou a ser vulgar com programas de isolamento determinados por autoridades de saúde ou outras de cariz governamental, em que quem adoecia e monitorizava os seus sintomas era acompanhado pelos restantes conviventes, familiares ou outros.
Numa perspectiva clínica e assistencial, porém, a originalidade foi outra.
Com efeito, a limitação da actividade profissional e social passou a decorrer não de deficiência física, psíquica ou sensorial, ou de um qualquer aspecto de incapacidade funcional, mas do simples facto de mesmo na ausência total de sintomas ou mal-estar, haver uma “base de tratamento” a partir do resultado de um teste diagnóstico.
Para mim creio que, são elementos deste tipo que, de modo conjugado com a narrativa sintomática de doença por SARS-Cov-2, acabam por ajudar a compreender muito da confusão gerada em torno das medidas anunciadas e decididas pelo Poder, em todo o Mundo, e as expectativas e comportamentos das populações.
Falta naturalmente conhecer, perceber e avaliar o que acontece ou vai acontecer com os doentes infectados no médio e longo prazo.
Afinal, como em muitos outros diagnósticos clínicos, precisamos de alargar o conhecimento do binómio doença-saúde por e pós-Covid-19.
E quando penso numa necessidade e dimensão científica e clínica, acredito que também por razões económicas, políticas e sociais.
Este aspecto é claramente o mais forte e com impacto para a convicção que mantenho. As consequências difusas que o vírus SARS-Cov-2 provocou na ordem mundial são absolutamente incalculáveis e ainda não estarão completamente estimadas.
No imediato, no mínimo, tornaram-se perceptíveis as necessidades de investimento reforçado e continuado na inovação tecnológica, diagnóstica e terapêutica, a par duma consciencialização no custo crescente e imparável do bem saúde.
Veremos que lições terão sido aprendidas…
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