Restrições avaliadas entre o “adequado” e o “absurdo”

2 de Março 2022

A sociedade portuguesa vive há dois anos com um novo manual de instruções sobre o que é permitido e proibido, restrições que a saúde pública considera que foram sempre adequadas mas que um sociólogo afirma que cedo se tornaram absurdas.

Confinamentos gerais, confinamentos parciais, concelhos cercados, praias interditadas, parques infantis fechados, bancos de jardim proibidos fizeram parte do rol das chamadas “medidas não farmacológicas” impostas aos portugueses ao cabo de vários estados de emergência, calamidade ou alerta que começaram em março de 2020 com a eclosão da pandemia da Covid-19.

Em declarações à agência Lusa, o presidente da Associação dos Médicos de Saúde Pública, Gustavo Tato Borges, afirmou que é preciso olhar para o combate à pandemia “de acordo com as evidências científicas” de cada momento, sustentando que “não houve nenhum momento em que as medidas tenham sido excessivas ou demasiado opressivas tendo em conta a doença” e o que dela se conhecia.

Com o panorama alterado por uma campanha de vacinação massiva e a presença da variante Ómicron, o médico admite que “agora, olhando para trás “numa fase inicial [as medidas adotadas] foram um pouco excessivas”.

“Não tínhamos tantos casos nem tantas mortes. Acabámos por confinar o mundo e agora, olhando para a estirpe que tivemos, algumas [medidas restritivas] foram demasiado pesadas”, diz.

Do outro lado, o sociólogo Alberto Gonçalves não tem dúvida de que “algumas medidas fizeram sentido nas primeiras semanas, quando não se sabia exatamente o que [a Covid-19] era ou podia ser, mas a partir daí entrou-se numa espécie de espiral de medidas absurdas, prepotentes e quase sempre prejudiciais, quer material quer emocionalmente”.

“Não sei exatamente o que se ganhou com isto, mas dá para ter uma ideia do que se perdeu: os danos causados à economia, desde logo, mas à cabeça das pessoas, não pela pandemia em si, mas pelas formas de combater a pandemia”.

Assumindo que concordou com o confinamento de “duas ou três semanas para achatar a curva” em que o Governo e as autoridades de saúde apostaram em março de 2020, Alberto Gonçalves refere que “as outras largas dezenas de semanas para achatar sucessivas curvas e salvar verões e Natais” foram uma questão de “meter medo às pessoas”.

“Um dos grandes problemas disto foi que se se insistiu sempre no medo e nunca na pedagogia ou na informação”, aponta o sociólogo: “em caso de dúvida ou sombra de dúvida, vamos pelo medo, fechem-se em casa, porque é preciso é que as pessoas estejam assustadas, o que acho que, desde logo, é sinal de mau governo”.

Alberto Gonçalves salienta que, dois anos volvidos, “a pandemia evoluiu para uma fase em que ainda menos se justifica a histeria”.

“Fez impressão ver a facilidade com que as pessoas acolheram medidas que não vinham de ciência nenhuma, mas de reuniões no Infarmed com três ou quatro especialistas escolhidos a dedo e de conselhos de ministros em que as pessoas diziam o que [o primeiro-ministro, António Costa] achava o mais conveniente ser dito. As pessoas respeitavam as medidas que dali saíam com uma obediência absolutamente cega, sem capacidade de questionar mesmo as coisas mais absurdas, como vedar bancos de jardim ou proibir a venda de garrafas de água em ‘take away’ sem nada que as justificasse de um ponto de vista científico ou não científico”, argumenta.

Gustavo Tato Borges concede que “no início da pandemia tenha havido alguma facilidade em conotar as mensagens de alerta e aviso com instilar o medo”, mas discorda totalmente que tenha sido esse o caminho, apontando que “houve informação, explicação, eventos nos órgãos de comunicação social a explicar o porquê das medidas”.

“Não concordo que se tenha recorrido ao medo para combater esta pandemia. Dizer isso é dizer que a pandemia até nem foi tão importante ou que esta doença nem tinha tanto impacto como isso. O impacto da covid-19 até acabou por ser mais reduzido exatamente pelas medidas que foram sendo implementadas. Estas medidas sofrem do sucesso que elas mesmas tiveram. Se não tivessem existido, estariam as mesmas pessoas [que afirmam que se apostou no medo] a criticar a Direção-Geral da Saúde, o Governo e o Ministério da Saúde dizendo que não tinham feito tudo o que deviam para resolver o problema. Agora, é fácil dizer que não eram precisas”, argumenta o profissional de saúde pública.

O médico considera que “em determinados momentos, não só não se foi longe de mais, como se poderia ter sido mais restritivo”, apontando a altura do natal de 2020, que precedeu o pico de mortalidade atribuída à Covid-19 em meados de janeiro de 2021.

Nessa altura, em que não houve limitações à mobilidade da população, “confiou-se demasiado que a situação estaria sob controlo”, afirma Gustavo Tato Borges, acrescentando que em alturas mais recentes, se devia ter mantido a obrigatoriedade de uso de máscara em espaços como bares e discotecas e que a reabertura das aulas presenciais no segundo período do ano letivo atual deveria ter sido atrasada “mais uma ou duas semanas” com aulas ‘online’.

Alberto Gonçalves salienta que “infelizmente, a generalidade dos governos ocidentais foi pela obrigação, pela punição, pela sanção e nunca pelo aconselhamento, que teria sido mais eficiente e com mais ou menos os mesmos resultados”.

“O Governo português não foi o pior do mundo mas foi dos piorzinhos, esteve entre os mais restritivos. Percebeu que os portugueses estavam particularmente receosos e havia benefícios [para a imagem do Governo] em aumentar as restrições, em controlar a vida das pessoas, em limitar a mobilidade”.

“Isto abriu um precedente para se decretarem estados de emergência ou calamidade com uma facilidade absolutamente lamentável. Não estou a falar de março de 2020, mas dos outros. Vai ser muito fácil, cá e lá fora, em sociedades mais dadas a aceitar o que os poderes lhes impõem, voltar a decretar coisas deste género por causa de outro fenómeno qualquer, real ou extrapolado. Gostaria que não, mas estou a esperar que sim”, analisa.

LUSA/HN

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