Medicina Geral e Familiar pode fazer mais pelos doentes com necessidades paliativas

20 de Abril 2022

No segundo dia das 26.ª Jornadas Nacionais Patient Care, que decorreram em Lisboa nos dias 7 e 8 de abril, especialistas em cuidados paliativos falaram sobre o que falta fazer na Medicina Geral e Familiar pelos doentes com necessidades paliativas.

“Os cuidados paliativos são cuidados para a vida, não são cuidados para a morte, mas aceitam a morte como fazendo parte integrante do processo de viver. Não é importante morrer bem, é importante viver bem até ao momento da morte”, disse a médica de família Cristina Galvão, que coordena a Equipa Comunitária de Suporte em Cuidados Paliativos Beja +, na Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo.

Este acompanhamento deve iniciar-se assim que a equipa de saúde percebe que o doente tem necessidades paliativas, e não apenas nos seus últimos dias de vida. “Os cuidados paliativos afirmam a vida, mas aceitam a morte. São baseados sobretudo nas necessidades dos doentes e não no diagnóstico, nem no tempo de sobrevida esperado. Não devem estar associados a situações de terminalidade”, referiu Cristina Galvão. “São cuidados ativos, que todos os dias têm que ser repensados, ou cada vez que há um agravamento da situação daquele doente”, acrescentou.

A Lei de Bases dos Cuidados Paliativos estabelece que: não se deve ser obstinado em termos de terapêutica e de exames complementares; o foco está no aumento da qualidade de vida do doente e da sua família; a prestação de cuidados deve ser individualizada e humanizada – não dirigida à doença, mas sim ao doente -; os doentes devem ser acompanhados por uma equipa multidisciplinar; os valores do doente devem ser respeitados e os cuidados devem ser continuados ao longo do processo de doença. “Os cuidados paliativos devem acontecer tão precocemente quanto possível no doente com doença crónica e acompanhá-lo e à sua família ao longo de todo o processo de doença, acompanhando a família também no processo de luto, que começa antes de o doente morrer e continua depois da sua morte”, reforçou a médica, depois de apresentar os princípios dos cuidados paliativos.

Dirigindo-se a um auditório repleto de médicos de família, Cristina Galvão frisou a importância do trabalho de equipa e da interdisciplinaridade. “As situações devem ser discutidas em equipa”, asseverou. “É importante que cada um dos elementos desta equipa tenha capacidade e competência para avaliar sintomas e às vezes até para propor terapêuticas. Porque quanto mais diferenciada a equipa for, melhor consegue discutir situações clínicas, ainda que não se seja clínico”, continuou. Além disso, segundo a médica, os seus colegas precisam também de estar atentos às necessidades económicas, sociais, profissionais e familiares dos utentes.

A intervenção terminou com uma nota importante sobre estes cuidados: “Não têm um caráter curativo, mas têm um caráter de acompanhamento no sofrimento e de melhoria da qualidade de vida e do bem-estar da pessoa e da sua família; prologam-se no período de luto e são uma intervenção rigorosa, cientificamente baseada no âmbito dos cuidados de saúde.”

Seguiu-se a apresentação de Daniela Duarte Silva, médica de Medicina Geral e Familiar e coordenadora da USF Brás Oleiro, do ACES Grande Porto – Gondamar, centrada no papel do médico de família nos cuidados paliativos.

“(…) as decisões não são fáceis de tomar”, reconheceu a médica. Por isso, e para adquirirem ferramentas que lhes permitam identificar os utentes que precisam desse apoio e prestarem os melhores cuidados, os médicos precisam de formação em cuidados paliativos, defendeu.

A pergunta “Ficaria surpreendido se este doente morresse no próximo ano?” – colocada ao médico de família para que este responda internamente – pode ajudar a detetar os doentes com necessidades paliativas. “Não é (…) prognóstico de morte, mas permite-nos soar campainhas”, segundo a médica.

Relativamente ao controlo de sintomas – outra área de atuação do medico de família -, Daniela Duarte Silva sublinhou: “Na consulta, nós temos que ser proativos nesta pesquisa”. Isso implica estar também atento aos sintomas que não são reportados pelo doente.

O médico de família tem ainda um “papel primordial no planeamento antecipado dos cuidados”. “Devemos ajudar o doente a refletir sobre aquilo que são as suas crenças, os seus valores e as ações que ele quer para o fim de vida”, recordou. Ao mesmo tempo, há que cuidar do cuidador.

“Em Gondomar, nós temos um protocolo com a câmara municipal e implementámos o projeto Mais Cuidar”: um grupo de apoio onde se partilham emoções e conhecimentos, constituído para aliviar a sobrecarga do cuidador.

Durante este processo, a articulação de cuidados é fundamental: “Quando temos um doente com estas necessidades, devemos articular-nos com todas as estruturas da comunidade (…) que possam permitir prestar o melhor apoio àquele doente”, sublinhou.

Depois da morte, o médico de família deve continuar a acompanhar a família, tanto em aspetos burocráticos como a nível emocional. “Podemos fazer uma coisa prática nas nossas agendas que é aquela consulta que estava agendada para o doente (…) ser transformada numa consulta para o cuidador, para nós podermos falar com ele de uma forma planeada, atempada e ajudar no processo de luto”, sugeriu.

Um estudo recente realizado no Centro Hospitalar Universitário do Porto mostrou que quatro em cada cinco doentes que morrem nos serviços de urgência têm necessidades paliativas. Mas, segundo Daniela Duarte Silva, “provavelmente não as tiveram a montante, ou seja, nos cuidados de saúde primários, e depois também não usufruíram desses cuidados no serviço de urgência”.

“Provavelmente não é isso que queremos nem para nós nem para os nossos doentes. Isto mostra que existem ainda muitas barreiras à atuação nos cuidados de saúde primários em relação aos cuidados paliativos”, comentou.

Para ambas as médicas, a importância dos cuidados paliativos é inquestionável. “Se começarem na Medicina Geral e Familiar, eles vão ser muito melhores, muito mais eficazes”, concluiu Daniela Duarte Silva.

HN/Rita Antunes

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Estudante do 2º ano do Curso de Especialização em Administração Hospitalar da ENSP NOVA; Vogal do Empreendedorismo e Parcerias da Associação de Estudantes da ENSP NOVA (AEENSP-NOVA); Mestre em Enfermagem Médico-cirúrgica; Enfermeiro especialista em Enfermagem Perioperatória na ULSEDV.

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