Na China rural o “pior passou” mas mágoa persiste após fim da política ‘zero covid’

4 de Fevereiro 2023

Num condado do sudoeste da China, funcionários de saúde disseram à Lusa que o “pior já passou”, dois meses após Pequim ter desmantelado a estratégia ‘zero covid’, mas a mágoa perdura entre quem perdeu familiares.

“Os médicos e enfermeiros choravam todos os dias”, contou Su Xiaoxiang, enfermeira no Hospital do Povo de Santai, condado com mais de 940 mil habitantes, a cerca de 120 quilómetros de Chengdu, a capital da província de Sichuan. “Agora, estamos felizes”, disse.

Face ao crescente descontentamento popular e colapso dos dados económicos, as autoridades chinesas optaram por um desmantelamento acelerado da estratégia ‘zero covid’, que vigorou no país ao longo de quase três anos e incluía o bloqueio de cidades inteiras, durante semanas ou meses, e a realização constante de testes em massa, entre outras medidas.

A súbita retirada das restrições, no início de dezembro passado, sem estratégias de mitigação ou aviso prévio, resultou numa vaga de infeções que terá abrangido até 90% da população, em algumas províncias, no espaço de pouco mais de um mês, segundo estimativas de diferentes governos locais.

No Hospital do Povo de Santai, quase todas as 800 camas foram ocupadas por pacientes com sintomas graves de covid-19, contou Su à Lusa. Camas dobráveis foram ainda dispostas pelos corredores, visando criar espaço para o fluxo de pacientes, sobretudo idosos, que acorreram à unidade de saúde.

Seis ambulâncias surgem agora estacionadas junto à porta oeste do hospital, um edifício de dez andares. Apenas um paciente está sentado nas dez cadeiras dispostas no departamento de infeções respiratórias.

As imagens de macas com pacientes, amontoadas em corredores onde ecoava o som de tosses persistentes, é uma “memória distante”, assegurou à Lusa o vice-secretário do Partido Comunista no hospital, Zhu Shiying. “O vírus tão depressa veio, como foi”, frisou.

Sem detalhar quantos pacientes morreram pela doença no hospital, Zhu revelou que foram sobretudo idosos, na casa dos oitenta ou noventa anos.

A avalanche de infeções, no entanto, deixou marcas que subsistem. Na aldeia de Baishu, a cerca de 50 quilómetros de Santai, uma residente, que solicitou anonimato, contou à Lusa que alguns dos seus familiares e vizinhos ficaram em estado grave e que outros morreram.

“Os seus corpos estão ainda em fila de espera para serem cremados em Deyang”, explicou. “Não há capacidade suficiente”, afirmou a mesma residente, acrescentando que alguns dos locais acabaram por recorrer a camponeses da vila, com formação básica, para fazerem a cremação. Situada a mais de 50 quilómetros, Deyang é a cidade mais próxima de Baishu.

Outros foram enterrados nos terrenos da respetiva família, uma prática habitual no interior do país. Os camponeses continuam então a plantar e a criar gado em torno das campas dos seus antepassados.

Face à ausência de medicação, alguns dos moradores tiveram que recorrer a remédios caseiros tradicionais – xaropes derivados de extractos de plantas ou água quente com raízes de peónia, alcaçuz, gengibre e alho -, contou a residente.

O impacto da doença aqui é, porém, difícil de avaliar: nenhum dos familiares ou vizinhos da residente ouvida pela Lusa foi testado para o vírus, devido à ausência de testes laboratoriais ou de antigénio.

O centro de saúde de Baishu – um edifício de três pisos, todo pintado em branco – deixou de aceitar pacientes na segunda semana após o surto chegar à aldeia. As salas de internamento somam cerca de 60 camas, dispostas lado a lado. A aldeia tem 28.660 residentes, entre os quais mais de 11.000 estão migrados noutros locais do país, de acordo com dados do último censo da China, realizado em 2018.

No sistema de saúde chinês, os hospitais de condado são instalações de segundo ou terceiro nível – o último nível das unidades com equipamento avançado, incluindo camas de cuidados intensivos e ventiladores. No entanto, continuam a não ter número suficiente de especialistas e equipamento para lidar com casos complexos e graves, em comparação com hospitais urbanos de nível semelhante, segundo o governo chinês, que apontou estas insuficiências como o principal motivo para manter a política de ‘zero casos’ ao longo de quase três anos.

Mas, em aldeias como Baishu, o sistema de saúde depende ainda de camponeses com treino médico e paramédico básico, conhecidos como “médicos de pés descalços”, uma herança das campanhas lançadas após a fundação da República Popular, em 1949, para fornecer serviços básicos de saúde nas zonas rurais. O centro de saúde local carece também de ventiladores e outro equipamento utilizado em cuidados intensivos.

“As famílias urbanas vão ao hospital à procura de tratamento e podem apurar se estão positivas”, explicou à Lusa o epidemiologista Yanzhong Huang, natural de uma aldeia no nordeste da China e que dirige atualmente a pesquisa em assuntos de saúde global no Conselho de Relações Externas, um centro de reflexão (‘think tank’) com sede em Nova Iorque. “Nas áreas rurais, porém, para muitas pessoas é apenas um processo natural: são infetadas e acabam por morrer em casa”, acrescentou.

LUSA/HN

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