HealthNews (HN) – O sonho do Estado-Providência, no que se refere à saúde, é um sonho concretizado ou ainda está longe da ideia do seu fundador, António Arnaut?
António José Barros Veloso (AJBV) – Antes do 25 de Abril, a saúde, em Portugal, era uma desgraça. Depois da Revolução, a Constituição de 1976 definiu que devia existir um serviço de saúde geral, universal e gratuito.
Foi um passo importante do ponto de vista político, mas ninguém pegava nessa determinação da Constituição. Foi António Arnaut que se lançou ao trabalho até conseguir redigir o diploma que criou o Serviço Nacional de Saúde.
Existiam hospitais centrais, uma rede de hospitais distritais – Beja, Famalicão, Funchal, etc. – e havia, sobretudo, uma carreira médica que formava médicos especialistas e não só: equipas médicas hierarquizadas, que tinham muita qualidade. As coisas funcionaram e os resultados foram extraordinários.
Entretanto, o Serviço Médico à Periferia (1976-1982) tinha levado muitos médicos recém-formados a conhecer as zonas rurais. O encontro das populações periféricas e sem apoio médico, com médicos jovens e entusiastas que se interessavam por elas, foi um acontecimento mágico. A partir daí, os portugueses à periferia perceberam que havia Medicina e que os médicos os podiam ajudar a resolver os seus problemas.
Entretanto, a tecnologia foi posta ao serviço da população e as estatísticas de saúde melhoraram: mortalidade infantil, esperança de vida.
Contudo, os objetivos nunca foram totalmente conseguidos porque os portugueses continuaram a pagar, do seu bolso, uma percentagem significativa das despesas com a saúde, que neste momento é ainda das mais altas da Europa.
Com a “invasão” da tecnologia moderna, a Medicina ficou mais cara, surgiram novas moléculas terapêuticas e, com uma classe média mais exigente, tornou-se numa área de interesse para investimentos financeiros e grandes negócios.
Hoje, a sociedade portuguesa enfrenta um gravíssimo desafio demográfico e as pessoas vivem mais (felizmente) e as doenças crónicas e as multi-patologias têm um peso muito maior.
A situação mudou e o setor privado é muito forte. Em contrapartida, os governos são “fraquinhos”, com pouca vontade ou capacidade para regular. Por outro lado, as carreiras médicas praticamente desapareceram. Não se trata apenas de formar especialistas, mas sim equipas com vários graus de experiência e de conhecimento, que agregue médicos que atuem em conjunto e no respeito por uma hierarquia.
Mas, sobretudo, a ideia exclusiva e obsessiva de produtividade e a primazia dada aos gestores, fizeram com que os médicos, que tinham um amor enorme à camisola, se aborrecessem com tantas exigências do setor administrativo. Muitos reformaram-se e deixaram o setor público no auge da sua carreira. Foi um prejuízo enorme para o ensino médico e deixou um “buraco” assistencial importante que ainda se mantém.
HN– Quais as razões que explicam a falta de confiança que hoje se consegue perceber na população relativamente ao imperativo constitucional de acesso à saúde?
AJBV – O Serviço Nacional de Saúde é um direito mas pode ser fornecido pelos serviços públicos em rede com o setor privado. Porque não? Mas é difícil, porque o Estado tem pouca capacidade reguladora para impor o cumprimento de regras e os hospitais privados têm objetivos e formas de atuar próprios.
Não fazem urgências com equipas pluridisciplinares, 24 horas/dia, porque isso é muito pesado; não fazem ensino pós-graduado, porque ensinar internos exige muito tempo; e fazem uma certa triagem das patologias. No terreno, portanto, os hospitais públicos e privados não atuam da mesma forma. Existem assimetrias muito grandes, mas tem de haver uma maneira de ultrapassar estas questões e fazer uma Medicina em rede.
HN – Então considera razoável, para suprir as ineficiências percetíveis do SNS em responder às expectativas e necessidades dos cidadãos, enveredar por um sistema misto e complementar, envolvendo o setor privado?
AJBV – Penso que a única forma é termos um sistema nacional de saúde. O Estado, sendo o financiador, não tem de ser necessariamente prestador, mas terá de negociar, em termos razoáveis, com o setor privado.
Os hospitais privados não podem é concorrer, num sistema pago em grande parte pelo Estado, em desigualdade com os hospitais públicos.
HN – Participou, como poucos, em muitas das propostas e iniciativas que hoje são parte integrante do SNS. Todavia, projetando o passado no presente, vemos que muitas das ideias propostas ficaram pelo caminho. Como criar um roadmap que consiga escapar aos ciclos políticos?
AJBV – Em Portugal, normalmente a passagem de um governo para outro desfaz grande parte daquilo que o anterior fez. Em todos os setores, não apenas na saúde.
Apesar de tudo, não podemos ser pessimistas, mas é preciso atuar.
A carreira médica praticamente desapareceu, não se resolveram os problemas das urgências dos hospitais e os cuidados de saúde primários, quanto a mim, não cumprem a sua missão de forma eficiente. Isso não se resolve sem que haja acessibilidade, um perfil médico distinto do atual e uma maneira diferente de encarar os cuidados de saúde primários. Estes têm de ser, efetivamente, a porta de entrada no sistema. Ou seja, os cidadãos têm de ter o seu médico assistente, no centro de saúde, para os atender quando adoecem. Hoje em dia, além de não existir acessibilidade, os médicos de família não estão treinados para isso. Foram sobretudo preparados para fazer prevenção da doença e promoção da saúde e não estão mentalizados para tratar doenças agudas. Não me parece que a reforma que o Ministério da Saúde está a fazer vá mudar isto tudo. Está mais preocupada com números e menos com qualidade.
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