Jaime Melancia: “portugueses continuam a enfrentar grandes desafios no que toca ao acesso à inovação”

20 de Junho 2024

A primeira sessão das “Innovation Talks”, uma iniciativa da Plataforma Saúde em Diálogo, é dedicada à avaliação de tecnologias de saúde. No mesmo dia, o HealthNews partilha com os seus leitores as ideias de Jaime Melancia, Tamara Milagre, Joaquim Brites e Eduardo Costa.

Jaime Melancia, presidente da direção da Plataforma Saúde em Diálogo, afirmou que “a inovação nos cuidados de saúde contribui para melhorar a saúde e o bem-estar dos cidadãos”, em particular daqueles que vivem com doença crónica, e que essa inovação está sustentada, “obviamente”, na disponibilização de serviços inovadores que vão ao encontro das atuais necessidades do cidadão, como, por exemplo, ao nível da saúde digital ou dos testes genéticos, “mas também no acesso a novas tecnologias ao serviço da saúde”.

Os cidadãos portugueses “continuam a enfrentar atualmente grandes desafios no que toca ao acesso à inovação”, em particular, segundo Jaime Melancia, “as pessoas com doenças oncológicas, autoimunes, doenças raras, entre outras”, e se por um lado estas terapêuticas “podem ser a única réstia de esperança para tratar determinada patologia, por outro sabemos que se tratam de medicamentos com preços muito elevados”, o que motiva este “dilema ético entre a necessidade de tratar e a sustentabilidade financeira”.

“É esta reflexão que pretendemos promover: olhar para o cenário atual no âmbito da inovação em saúde, partilhar os bons exemplos e entender como podemos contornar os obstáculos e tornar o acesso à inovação mais equitativo para todos”, informou o presidente da PSED. Pelas razões já enumeradas, a Plataforma considera “essencial realizar esta iniciativa com o objetivo de dar a conhecer melhor o atual funcionamento do processo de avaliação de tecnologias de saúde (ATS) no país e de perceber como podem os doentes estar mais envolvidos nas várias fases do processo de avaliação e, claro, como fazer com que esse acesso à inovação seja mais célere”. Jaime Melancia entende que o novo regulamento europeu de avaliação de tecnologias “poderá trazer algumas vantagens no que diz respeito a um acesso mais precoce à inovação”, mas as questões económicas continuam a ser soberanas aos Estados-membros, o que significa que há que “refletir numa solução conjunta para um acesso mais eficaz a tecnologias inovadoras”. E esse caminho “pode e deve passar por uma convergência de esforços entre todos os agentes do processo: investigadores, médicos, indústria farmacêutica e os próprios doentes, cuja realidade não pode nunca ser descurada”, reforçou.

Segundo Jaime Melancia, a importância do envolvimento dos doentes na avaliação de tecnologias de saúde “é amplamente reconhecida a nível europeu”. “Os doentes são os principais interessados e destinatários finais das tecnologias de saúde e, por isso, têm um ‘direito democrático’ a ser envolvidos no processo. Além disso, podem fornecer informações e pontos de vista sobre o impacto que a sua doença e os tratamentos têm na sua vida diária, informação muito relevante para o processo de decisão”, explicou.

“Por isso mesmo, continuaremos a apelar a uma intervenção mais efetiva e alargada dos representantes dos doentes no processo de avaliação de tecnologias”, garantiu. A Plataforma gostava que “todo este processo fosse revisto, uma vez que atualmente em Portugal os doentes só entram numa das fases precoces da avaliação do novo medicamento”.

Além disso, “o processo está demasiado focado na perspetiva do SNS, na perspetiva económica, e tem pouco em conta outras dimensões, isto é, a dimensão societal: o benefício real do medicamento na qualidade de vida do doente e cuidadores. Deveríamos ter, por exemplo, um representante das pessoas que vivem com doença na própria comissão de avaliação de tecnologias de saúde do Infarmed. O doente é ‘perito’ na sua própria doença”, defendeu Jaime Melancia, que espera que o novo regulamento europeu “possa trazer mudanças a este nível, uma vez que prevê a participação horizontal dos doentes em todo o processo e a sua capacitação para a sua participação na avaliação de tecnologias”.

Eduardo Costa, que também participa na sessão de hoje, a partir das 14h no auditório da Associação Nacional das Farmácias, em Lisboa, explicou ao HealthNews como funciona o processo de avaliação de tecnologias de saúde: “O processo de ATS em Portugal encontra-se integrado no contexto europeu, liderado pela Agência Europeia do Medicamento. Após a autorização de entrada no mercado, e aquando do pedido de financiamento, o processo transita para o Infarmed. Aqui, a nível nacional, é feita uma comparação entre a nova tecnologia e o standard of care, primeiro do ponto de vista farmacoterapêutico e posteriormente do ponto de vista económico”. Estas duas avaliações “permitem apoiar o processo de negociação que se segue, de modo a garantir que as decisões de financiamento são baseadas em evidência”.

“Para já, o novo regulamento europeu tem uma aplicação reduzida – específica apenas para determinados medicamentos. De qualquer forma, o novo regulamento prevê a realização de avaliações clínicas conjuntas a nível europeu. Tal pode permitir uma maior harmonização de metodologias a nível europeu, e pode também contribuir para acelerar o processo de aprovação a nível nacional”, esclareceu o presidente da Associação Portuguesa de Economia da Saúde (APES).

Questionado sobre como equilibrar o acesso à inovação com a eficiência e sustentabilidade do sistema de saúde, Eduardo Costa afirmou: “As inovações – que tendem a trazer ganhos significativos para os doentes – trazem também frequentemente custos mais elevados para o sistema de saúde”. Isso “implica que os sistemas de saúde são pressionados do ponto de vista financeiro para fazer face ao custo da inovação. Daí a importância dos processos de avaliação de tecnologias de saúde, como forma de apoiar a tomada de decisão política sobre a incorporação da inovação, que se quer criteriosa e baseada em evidência. A utilização de metodologias harmonizadas a nível europeu, o envolvimento dos vários stakeholders (incluindo doentes) e a utilização de mecanismos de partilha de risco podem contribuir para uma maior solidez dos processos de ATS – contribuindo para a sustentabilidade dos sistemas de saúde, sem colocar em causa o acesso à inovação”, esclareceu o presidente da APES.

No evento de hoje, que tem o apoio da AstraZeneca e da Associação Nacional das Farmácias, a perspetiva dos doentes será transmitida por Tamara Milagre, presidente da Associação EVITA – Cancro Hereditário, e Joaquim Brites, presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN).

“Falando da nossa perspetiva enquanto Associação EVITA – Cancro Hereditário, os doentes e os seus representantes fornecem insights valiosos sobre as necessidades e preferências dos doentes, ajudando a garantir que os medicamentos desenvolvidos são realmente úteis e adaptados às suas condições e aos seus estilos de vida. Conseguimos trazer a experiência direta de viver com a doença, permitindo que os centros de investigação e a indústria farmacêutica compreendam melhor os desafios e as preocupações dos doentes”, referiu Tamara Milagre. A presidente da EVITA destacou ainda os seguintes benefícios: “A inclusão das associações no processo pode aumentar o envolvimento ativo e a confiança dos doentes nos tratamentos, o que pode levar a uma melhor adesão aos regimes terapêuticos. As associações podem ajudar a educar os doentes sobre a importância da adesão ao tratamento e como usar os medicamentos corretamente”; “Podemos ajudar a desenhar ensaios clínicos mais relevantes e representativos, incluindo critérios de inclusão e exclusão que reflitam melhor a população real de doentes e podemos ajudar a identificar e relatar efeitos secundários e outros problemas de segurança que podem não ser imediatamente evidentes para os investigadores”; “Temos voz junto de reguladores e decisores, o que pode melhorar e acelerar o acesso”; “Identificamos desigualdades no acesso a medicamentos e tratamentos, promovendo políticas que garantam que todos os doentes possam beneficiar dos avanços médicos”; “Promovemos a transparência ao longo do processo de desenvolvimento de medicamentos, fortalecendo a confiança entre a indústria farmacêutica e os doentes”; “Damos feedback contínuo durante todo o ciclo de vida do medicamento, desde a investigação inicial até o uso clínico e a fase de pós-comercialização”; “As associações ainda ajudam a identificar e priorizar medidas de eficácia e de qualidade de vida que são mais significativas para os doentes, garantindo que os novos tratamentos melhoram realmente a vida dos doentes”; “Garantimos que os doentes têm um papel ativo na tomada de decisões sobre seus tratamentos, levando a escolhas mais informadas e personalizadas”.

“Neste momento, o Infarmed envolve as associações capacitadas no âmbito do projeto INCUIR durante a fase do PICO, onde temos a oportunidade de identificar, através de um questionário, as prioridades e as preferências dos doentes que estejam a fazer ou usar a tecnologia em avaliação”, explicou a fundadora da EVITA. “As informações recolhidas visam ajudar os profissionais da DATS e da CATS a entenderem o impacto real que um novo medicamento ou tecnologia pode ter na qualidade de vida dos doentes e seus cuidadores.”

“Reconhecemos a boa intenção, mas dificilmente teremos conhecimento deste tipo de doentes sem arriscar o incumprimento da lei sobre a proteção de dados e ferir questões éticas. Adicionalmente, o prazo de resposta de três semanas põe muita pressão adicional nas associações, pois estão cada vez mais assoberbadas de trabalho e têm de planear estrategicamente o seu escasso tempo”, observou Tamara Milagre, que apresentou ao HealthNews uma proposta de solução: “A EVITA lançou recentemente a EVITA Platform, uma plataforma digital que visa educar e apoiar pessoas preocupadas com o seu risco para cancro (qualquer um de nós) e doentes oncológicos. Temos a confiança dos cidadãos do nosso lado e já contamos em 3 meses com 2700 registos. Ao utilizar a ferramenta integrada ‘Os meus Questionários’ de maneira estratégica e bem planeada, aplicável a qualquer patologia no contexto ATS, a EVITA Platform pode recolher informações valiosas e detalhadas sobre a experiência real dos doentes com as tecnologias de saúde em avaliação, contribuindo significativamente para uma avaliação mais centrada no doente e informada. Disponibilizando da mais alta tecnologia para garantir o cumprimento dos regulamentos em vigor, promove e agiliza a integração da perspetiva do doente.”

A EVITA “pode garantir o anonimato e a confidencialidade das respostas dos doentes dentro da EVITA Platform. Isso ajuda a recolher dados mais precisos e sinceros sobre as experiências dos doentes”. A ferramenta “inclui funcionalidades para a análise de dados, permitindo a agregação e a interpretação das respostas de maneira eficiente. Isso pode incluir a identificação de padrões e tendências nas respostas dos doentes”. Por outro lado, a plataforma “pode oferecer feedback em tempo real aos doentes que completam os questionários, agradecendo a sua participação e fornecendo informações sobre como suas respostas serão utilizadas no processo de avaliação das tecnologias de saúde”.

“A plataforma gera relatórios detalhados com base nas respostas aos questionários, que podem ser compartilhados com os avaliadores de tecnologias de saúde, decisores políticos e outras partes interessadas. Estes relatórios podem destacar as principais preocupações, benefícios percebidos e áreas de melhoria identificadas pelos doentes.” De acordo com Tamara Milagre, a ferramenta de questionários “pode ser customizada para diferentes grupos de doentes, considerando variáveis como a idade, o tipo de condição de saúde, o estádio da doença, entre outros. Isso assegura que as respostas recolhidas sejam representativas das diversas populações de doentes”. Além disso, a plataforma “pode realizar consultas interativas, onde os questionários são aplicados em diferentes fases do uso da tecnologia de saúde, capturando assim uma visão longitudinal e dinâmica das experiências dos doentes”. E a EVITA Platform “pode também envolver e educar os doentes sobre a importância da sua participação nas avaliações de tecnologias de saúde, reforçando a ideia de que as suas experiências e opiniões são valiosas e têm um impacto direto nas decisões de saúde”.

“Temos o patient trust do nosso lado. O Infarmed, aproveitando o que já existe e funciona bem, pode facilmente integrar a plataforma e emitir uma declaração ou diretiva formal que reconheça a EVITA Platform como uma ferramenta oficial e válida para a recolha de dados sobre a experiência dos doentes, melhorando a qualidade e a relevância das avaliações de tecnologias de saúde em Portugal”, concluiu Tamara Milagre.

Para Joaquim Brites, “os doentes, ou quem os represente, devem ser envolvidos em tudo o que lhes diga respeito”. As novas tecnologias de saúde devem separar-se em três categorias: medicamentos inovadores, dispositivos médicos inovadores e produtos de apoio indispensáveis à manutenção da saúde. “Em qualquer das categorias, e porque os doentes são os seus principais destinatários e os seus principais utilizadores, eles deverão ter uma palavra a dizer quanto à sua avaliação, utilização e, até, à sua aprovação”, frisou Joaquim Brites.

“Dado que o grupo de doenças que represento (doenças neuromusculares) é o maior no universo das doenças raras, as referências que apresento são fruto da minha experiência nesse setor, há quase 30 anos”, continuou Joaquim Brites.

“No caso dos medicamentos inovadores, alguns considerados órfãos porque são únicos e sem comparadores, muitas vezes a discussão em torno da sua aprovação concentra-se em argumentos que fogem do essencial. Questões como o número de utilizadores prováveis, doentes em ensaios clínicos, implicações de receituário, possíveis custos, entre outros, podem atrasar processos de avaliação que, pela sua urgência, podem ter implicações na saúde e na sua deterioração”, alertou o presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares. “Os doentes, ou as associações que os representam, têm, aqui, um papel determinante para invocar prioridades e de ajudar a avaliar os factos que levem à aprovação baseada nas reais prioridades, na sua legitimidade e equidade. Podem, inclusivamente, pelo conhecimento que têm do terreno, apoiar na criação de equipas de acompanhamento de ensaios clínicos, de seleção de doentes, etc.”

“Outo fator importante no envolvimento das organizações de doentes é a possibilidade de estas participarem no desenvolvimento de projetos específicos de investigação”, para que “sejam desenhados em conformidade com alguma auscultação e com algumas expectativas das pessoas beneficiárias”. “Com o envolvimento de algumas associações de doentes, com maior experiência internacional, este conhecimento pode ser decisivo quanto à necessidade de complementar informação junto das Entidades Reguladoras competentes.”

Relativamente aos dispositivos médicos inovadores, “também é importante ouvir quem os vai utilizar. Os doentes, regra geral, trocam impressões com outros utilizadores ou com que participa ativamente em ensaios. Embora se trate de um produto tecnológico de auxílio à atividade médica, importa recolher experiências de utilização. Desta forma, o input que é conseguido pode ser importante para a apreciação da Entidade Reguladora e para a decisão final.”

Quanto aos produtos de apoio à manutenção da saúde, “importa recolher a opinião técnica de quem avalia diariamente vários tipos de produtos destinados a compensar perdas de postura, desenvolvimento de deformações (escolioses, cifoses, cifoescolioses, etc.). Tudo tem que ser feito com a colaboração de técnicos experientes que, no momento da aprovação, ou discussão, são determinantes para uma decisão consensual e esclarecida.”

Para Joaquim Brites, com estas metodologias, “é expectável que aumentem os níveis de confiança dos utilizadores (os doentes) e que reduzam os processos de intolerabilidade, tornando as aprovações mais transparentes, menos demoradas e, porque não dizê-lo, mais justas”.

“Há, no entanto, e na minha opinião, um aspeto no qual a grande maioria das associações de doentes, nomeadamente as que não têm corpo médico, não devem interferir”: a componente clínica, ressalvou. “Para além de todos os critérios clínicos já terem sido largamente escrutinados antes e depois dos ensaios clínicos, compete ao lado médico acompanhar e avaliar a evolução dos tratamentos. Estas organizações de doentes precisam de desenvolver uma relação efetiva de proximidade com os centros de decisão, sem prejuízo de apresentarem permanentemente a defesa das pessoas que vivem com a doença”, sustentou Joaquim Brites.

Joaquim Brites disse ao HealthNews que “existem muitas formas de contribuição ativa dos doentes, ou dos seus representantes, para este processo”. “Na atualidade, sempre que se procura construir uma mudança, procura-se demonstrar os factos que levam à necessidade da sua implementação. Para isso, devem ser criadas bases de evidências, quer sejam quantitativas, quer sejam qualitativas.” “Nas instituições mais organizadas, começa a ser um hábito saudável proceder à avaliação de várias ações, ou de inquirir diretamente os destinatários de algumas atividades. Bastará, por isso, compilar e demonstrar dados concretos sobre as maiores necessidades, ideias mais desejadas, ações concretas com maior número de propostas, etc.”, constatou Brites, partilhando um bom exemplo de apelo à ação: Patients and public are important stakeholders in health technology assessment but the level of involvement is low – a call to action | Research Involvement and Engagement | Full Text (biomedcentral.com).

“Muitos outros exemplos poderiam ser apresentados. Em Portugal, precisamos de implementar uma maior cultura de envolvimento dos interessados. E isso deve ser feito nas áreas mais sensíveis da nossa sociedade – a saúde, a educação e a proteção social”, defendeu Joaquim Brites. “Com a inovação na área das tecnologias em saúde, a população cria expectativas de vida com base em princípios de longevidade, de tratamentos previsíveis para o que, hoje, não é tratável, novos hábitos sociais, etc. É, por isso, muito importante que as pessoas contribuam com ideias para o seu futuro”, concluiu.

HN/Rita Antunes

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