Na Associação Mundo Feliz, em Algés, no último ano aumentaram os pedidos de ajuda, que já não é só alimentar, e o número de pessoas apoiadas, mesmo quando isso obriga a um enorme esforço para entregar os bens procurados a quem deles precisa.
“Ajudamos toda a gente que bate à porta, nunca recusamos a ninguém”, disse à Lusa Cecília Minascurta, presidente da associação.
No último ano, apenas as filas de quem aguarda a vez para receber o saco de comida para a semana diminuíram. Não é uma contradição nos termos, é organização.
O agravar da pandemia de Covid-19 e todas as dificuldades sociais e económicas associadas foram alongando a perder de vista a fila de desempregados, pessoas sem recursos financeiros e estudantes, provenientes do bairro, dos concelhos limítrofes ou da margem sul do Tejo, imigrantes e, com o passar dos meses, cada vez mais portugueses.
A rua de Algés repleta de gente a fazer fila desde as primeiras horas da manhã levou Cecília Minascurta a reorganizar a distribuição de comida, evitando o barulho para os moradores e o desconforto para os utentes. Dividiu-a por três dias da semana: quarta-feira para os vizinhos do bairro, quinta-feira para quem vem de Lisboa e linha de Sintra, e sexta-feira para quem precisa de atravessar o rio, gastando dinheiro em transportes, para ter o que comer.
“Quando começou no ano passado, achámos que era uma coisa temporária, achámos que ia demorar três meses e que íamos conseguir dar uma resposta e depois acabava. Mas não, cada vez aumentou mais. Neste momento a associação chega a ter 1.200 famílias que apoia mensalmente”, disse Cecília Minascurta, explicando que as doações que recebe do Banco Alimentar, assoberbado com pedidos de todo o lado, não chegam nem para ajudar 50 famílias numa associação que está a entregar centenas de sacos de alimentos por dia.
Ajudar os portugueses é até o trabalho menos complicado. Difícil é encontrar soluções para os imigrantes, que sem qualquer processo de legalização entrado no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras ficaram completamente dependentes da associação para tratar da regularização no país e para comer, uma vez que sem documentos não têm qualquer apoio do Estado.
“Para eles a única salvação foi aqui a associação, porque conseguiram inscrever-se para tratar de alguns documentos, da procura de emprego. Alguns já pediam ajuda para comer, mas desde que começou a pandemia é todas as semanas, eles não têm onde ir. Tentamos articular com as juntas de freguesia para ver mais perto da zona onde moram, mas é muito complicado e demora quase 90 dias para se conseguir. Pessoas do Barreiro, Seixal vêm até aqui. É longe, mas vêm até aqui porque não têm onde ir buscar um saquinho de alimentos”, disse Cecília Minascurta.
O dia da presidente da associação, e dos voluntários que compõem a equipa do apoio social, começa cedo e é “muito corrido”, com o trabalho de distribuição de apoio às pessoas carenciadas, a recolha de alimentos e doações que percorre supermercados e pastelarias solidárias, a triagem, o ensacamento, e ainda o trabalho administrativo de ajuda aos imigrantes na legalização no país e procura de emprego, que passou para uma loja algumas portas ao lado.
A loja onde a associação funcionava por inteiro antes da pandemia está agora transformada num armazém. Apenas no pequeno espaço do R/C permanecem secretárias das funcionárias. As escadas estreitas que levam à cave desembocam num espaço dividido em dois: despensa e roupeiro, onde um grupo de voluntárias vai enchendo os sacos de quem chega com comida, ou onde, por marcação, se pode ir procurar roupa, sapatos, e produtos em falta para a casa.
Nos dias de maior frio, em janeiro, foram vários os pedidos de um casaco quente ou um cobertor.
As prateleiras da despensa, ainda bastante compostas no início da manhã, estarão vazias antes da hora de almoço. E será necessário que voltem a encher, “uma preocupação” que faz de cada semana “uma luta”, mas que conta hoje também com a solidariedade dos moradores do bairro, que, sensibilizados pelas filas, começaram a entregar donativos à porta da associação.
“Mas nunca chega”, desabafou Cecília Minascurta.
Já depois de ter passado pela mesa à entrada da loja onde está o gel de desinfeção e a voluntária que confirma na lista os utentes do dia, Carlos Gomes vai descendo pelas escadas, com cautela, e com um saco de supermercado na mão enquanto dá e recebe os bons dias da equipa que já conhece e ela já o conhece bem.
A vida de Carlos Gomes, reformado, já não era fácil antes da pandemia. Há quatro anos que conta com a ajuda alimentar semanal da Mundo Feliz, além do apoio mensal da junta de freguesia, e há 11 que mora no bairro, num quarto alugado.
“Eu preciso, a minha reforma é muito pouco, são 400 e tal euros, quase não dá para nada. Pagar a renda da casa, luz…”, disse, elogiando quem o ajuda.
“Sou bem atendido, as pessoas são muito simpáticas, não é por estarem aqui, se virarem as costas digo a mesma coisa”, afirmou, recebendo de volta um coro de risos.
Elisabete, imigrante do Brasil, desempregada, está há quatro anos a receber apoio da associação, onde se sente em casa: “Aqui a gente considera uma família, somos tratados como iguais, independente da raça ou da cor”.
Vanessa, também imigrante brasileira, perdeu o emprego quando as ruas perderam gente. Ainda conseguiu voltar a atender ao balcão quando no verão a pandemia teve uma acalmia, mas voltou a perder o emprego quando tudo se agravou.
“Estou na esperança de que no fim do mês reabram as coisas e novas coisas vão surgir. Tenho fé que vou conseguir um emprego para mim logo, logo”, disse.
A pandemia também trocou às voltas à estudante universitária cabo-verdiana Emanuela Cabral, que partiu para Bragança há dois anos para fazer um mestrado em Gestão Organizacional e que se viu forçada a trancar a matrícula e rumar a Lisboa à procura de emprego para poder subsistir. Foi a Mundo Feliz que lhe encontrou a vaga como empregada interna, o que não evita, ainda assim, que precise de apoio alimentar.
Nada que a faça perder o norte: “Espero que em breve consiga estudar, porque vim para fazer mestrado, espero que consiga fazer, porque quero fazer mesmo”.
Atrás das mesas onde se vão ensacando mercearias, frutas, pão, leite, sopa, refeições confecionadas e alguns mimos para a semana – há chocolates e bolos – a voluntária Filomena, a Mena, como a tratam na associação, e “muito faladora”, segundo a própria, vai atendendo toda a gente com boa disposição.
Reformada de uma vida de trabalho em Paris, voltou a Lisboa e aborreceu-se, porque “aqui uma pessoa reformada fica sem jeito, sem nada para fazer”. Inscreveu-se na associação como voluntária por conselho de uma amiga.
“Cheguei aqui e encontrei uma família”, disse, sobre a associação onde vai três vezes por semana por ‘necessidade’: “Tenho que vir, porque senão faz-me muita falta”.
Filomena espera que a associação permaneça de portas abertas durante muito tempo, onde quando chegou se entregavam 40 sacos por dia e onde agora já chegou a fazer 500.
A alegria só esmorece um pouco quando fala sobre o que é lidar diariamente com os problemas dos outros, o que nem sempre é fácil.
“Às vezes não. Faz muito mal a gente pensar. Eu venho como voluntária, não preciso, porque já sou uma pessoa reformada, tenho a minha vida controlada, e faz-me mal na barriga saber que há muita gente que vem aqui que não tem almoço e que se não for a refeição que levam daqui não têm algo para comer. E aqui há sempre uma refeição, e duas e três, e às vezes até quatro. E a Cecília dá todos os dias. Ela não deixa ninguém ir sem nada. E quando não tem vai à procura”, declarou.
LUSA/HN
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