Serviço social em teletrabalho pode comprometer a sinalização de maus tratos a crianças e idosos

12 de Maio 2020

O teletrabalho no serviço social pode estar a comprometer a sinalização e prevenção de situações de maus tratos a crianças e idosos, admite uma especialista em serviço social com base nos resultados de um inquérito.

Maria Irene Carvalho, especialista em serviço social em Portugal e professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa, disse à Lusa que há “uma parte de controlo social subjacente ao trabalho dos assistentes sociais que pode estar a perder-se” com o teletrabalho no atual contexto da pandemia de covid-19.

A constatação resulta de um inquérito colocado a quase 1.300 assistentes sociais em Portugal, que ainda decorre até dia 15, não só em Portugal, mas também em Espanha e Itália, e que pretende aferir estratégias de intervenção do serviço social no contexto da emergência provocada pela covid-19, tendo os resultados preliminares para os profissionais portugueses, com base nas respostas obtidas até 23 de abril, sido apresentados na segunda-feira.

O teletrabalho, uma modalidade que passou a ser a normalidade de muitos setores e empresas, é uma realidade para uma minoria no serviço de assistência social, com apenas 22,6% dos inquiridos a afirmar que se encontra nesse regime de trabalho a tempo inteiro. O trabalho a partir de casa em alguns dias da semana é o regime aplicável a 40,6% dos inquiridos e 29,4% responderam que o tipo de atividade desempenhado faz com que o teletrabalho não seja aplicável.

Quase 6% afirma que não está em teletrabalho, porque não lhe foi concedido.

Mais de 80% não faz visitas domiciliárias e quase metade não trabalha em contacto direto com os utentes, apesar de esse contacto ser a base do serviço social, referiu Maria Irene Carvalho, sublinhando que há um lado de controlo social no trabalho dos assistentes que está a deixar de ser feito pela impossibilidade de visitarem e acompanharem as famílias nas suas casas.

O teletrabalho pode estar, por isso, a permitir que não sejam tão bem cuidados idosos que deixaram de frequentar centros de dia ou de ter assistência ao domicílio, estando entregues a famílias sem competências para essas tarefas, o mesmo acontecendo com as crianças, agora mais sujeitas a situações abusivas e de risco.

Maria Irene Carvalho sublinhou que a proteção social foi uma das necessidades dos utentes identificadas pelos assistentes sociais nas respostas abertas do questionário, referindo-se especificamente a situações de violência e maus-tratos e crianças em situações de perigo e em risco.

Outra constatação que resulta das respostas ao inquérito é a de que os assistentes sociais não têm formação para responder numa emergência, o que se traduz em apoios assistencialistas, do género de entrega de bens alimentares e outros bens para satisfazer necessidades básicas, e na falta de projetos inovadores na resposta, defendeu a especialista em serviço social.

Apenas cerca de 26% dos inquiridos afirmou estar a trabalhar em projetos de resposta à emergência, tendo a grande maioria (67,9%) respondido que a sua atividade de intervenção na pandemia se centra no apoio psicossocial a indivíduos e famílias. Quase 75% dos inquiridos afirmou que a instituição onde trabalha não tem assistentes sociais especializados em situações de emergência, uma formação que só se pode obter por pós-graduação, uma vez que não consta da formação inicial destes profissionais, referiu Maria Irene Carvalho.

A falta de profissionais nas instituições ajuda a agravar a incapacidade de uma maior generalização de respostas inovadoras a esta crise, uma vez que retira tempo aos que trabalham para analisar com maior profundidade as questões com as quais lidam.

Mas também existem relatos de boas práticas, refere Maria Irene Carvalho, que sublinha projetos desenvolvidos sobretudo com o apoio de municípios e que permitem maior criatividade nas respostas.

Sobre condições de resposta nas instituições, as respostas revelam que quase metade dos inquiridos aponta que na instituição onde trabalha não existe um plano de contingência, o que a professora do ISCSP diz ser reflexo da existência de muitas pequenas instituições, com menos de uma dezena de funcionários, sem capacidade ou conhecimentos para elaborar um plano de contingência.

Quanto a equipamentos de proteção individual quase 30% afirma que tem acesso, mas em quantidade insuficiente e 1,6% refere que não os tem disponíveis. Aqueles que os têm conseguiram-nos maioritariamente através da instituição (59,5), mas 5,1% arranjou-os por meios próprios.

A falta de recursos financeiros para aquisição destes equipamentos é uma das principais dificuldades apontadas no inquérito.

Entre os problemas apontados à gestão da pandemia, muitos assistentes sociais referiram o excesso de orientações por parte da Direção-Geral da Saúde e do Instituto da Segurança Social, revelando dificuldade na gestão de informação que nem sempre consideram útil, por ser demasiado generalista e não ter aplicabilidade.

“A intervenção pelos assistentes sociais não se faz com um modelo fixo. Cada situação tem uma resposta e gera-se um problema de adequabilidade”, disse Maria Irene Carvalho, referindo, por exemplo, as determinações para confinamento em lares, quando em muitos não existem condições que o permitam.

Cerca de 8% dos inquiridos diz não ter recebido qualquer indicação, mas também não o considera necessário, mas cerca de 10% admitem ter sentido falta dessas orientações.

Os utentes, para além de apoios alimentares e económicos, têm também entre as principais necessidades meios tecnológicos de combate à solidão e isolamento social, sobretudo os mais idosos.

Os assistentes sociais lamentam a falta de reconhecimento pelo seu trabalho na linha da frente no combate à pandemia e afirmam ter que lidar com situações difíceis e dilemas éticos, como obrigar um utente a realizar um teste de despiste contra a sua vontade ou manter doentes com demências em confinamento, sem que estes tenham capacidade de compreender as razões. Indicam ainda como difícil a recusa de acolhimento de emergência a pessoas devido ao incumprimento das recomendações da DGS.

Portugal contabiliza 1.144 mortos associados à covid-19 em 27.679 casos confirmados de infeção, segundo o último boletim diário da Direção-Geral da Saúde (DGS) sobre a pandemia.

Portugal entrou no dia 03 de maio em situação de calamidade devido à pandemia, depois de três períodos consecutivos em estado de emergência desde 19 de março.

Esta nova fase de combate à covid-19 prevê o confinamento obrigatório para pessoas doentes e em vigilância ativa, o dever geral de recolhimento domiciliário e o uso obrigatório de máscaras ou viseiras em transportes públicos, serviços de atendimento ao público, escolas e estabelecimentos comerciais.

LUSA/HN

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