A terapia antirretroviral melhora significativamente a sobrevivência das pessoas infetadas com VIH, aumentando a sua esperança e qualidade de vida. Além disso, desempenha um papel muito relevante na prevenção da transmissão do HIV-1 na população, contribuindo para o controlo desta pandemia. No entanto, o aparecimento de mutações de resistência à terapia antirretroviral representa uma grande ameaça.
O Brasil tem o maior número de pessoas que vivem com HIV na América do Sul, mas o rastreio de mutações de resistência no VIH não é realizado universalmente no país. Publicamos, recentemente, em conjunto com autores Brasileiros e Espanhóis, um estudo com 20.226 pessoas infetadas com VIH seguidas no Brasil ao longo de mais de 8 anos (https://doi.org/10.3390/ijms22105304). Encontramos níveis preocupantes de mutações de resistência no HIV, tais como M184V, K103N e M41L, e um aumento preocupante, ao longo dos anos, na frequência da mutação K65R. O trabalho tem implicações clínicas para o Brasil, salientando que alguns dos fármacos mais utilizados na terapia e, também, na profilaxia pré-exposição ao VIH, podem estar comprometidos. Além disso, destaca também fatores associados ao aumento da mutação K65R, que são de interesse geral para impedir o surgimento e transmissão de mutações de resistência.
A mutação K65R surge maioritariamente em resposta ao uso do tenofovir, mas causa resistência ou redução da suscetibilidade a vários inibidores da transcriptase reversa do VIH. Assim, em conjunto com outras mutações a K65R, pode pôr em risco a eficácia do regime antirretroviral utilizado. A aparição desta, e de outras mutações, está correlacionada com a grande variabilidade genética do VIH e com processos de seleção, sendo que, na presença de determinado fármaco, serão os vírus com as mutações de resistência que irão conseguir proliferar, podendo provocar casos de falência do tratamento. Os resultados obtidos reforçam a importância da chamada estratégia de “genotipagem universal”, em que todas pessoas infetadas com VIH são testadas no momento do diagnóstico, para identificação de mutações de resistência no vírus, permitindo a adoção dos regimes terapêuticos mais eficazes para cada caso.
O crescimento da mutação K65R no Brasil acompanha uma alteração nas recomendações terapêuticas, a nível do país, em que o tenofovir passou a ser utilizado, preferencialmente, substituindo a zidovudina. Apesar da tendência decrescente na prevalência de várias mutações, os níveis de resistência observados nos vírus isolados da população brasileira são, ainda, elevados e preocupantes. Os nossos resultados sugerem que a alteração realizada em 2013 no Brasil, alargando os critérios para incluir mais pessoas na recomendação para testes de genotipagem do VIH, teve um impacto positivo, mas, ainda assim, foi insuficiente. Existe, ainda, uma prevalência elevada de mutações como a M184V, K103N e M41L, que estão subjacentes a muitos casos de falha de tratamento no Brasil, não só entre 2008 e 2012, mas também depois de 2013. Além disso, o aumento da K65R é particularmente preocupante em combinação com os elevados níveis de M184V, sugerindo que a eficácia da terapia pré-exposição poderá estar em parte comprometida.
Adicionalmente, os resultados agora apresentados sugerem que alguns fatores genéticos no VIH e na população brasileira podem ter potenciado o forte aumento de frequência da mutação K65R de 2,23 para 12,11% em menos de 10 anos. O estudo apresenta, também, a hipótese que, além dos fatores tradicionalmente considerados como diferenças sociodemográficas, nos protocolos de tratamento adotados e na adesão ao tratamento, o perfil genético do VIH e da população brasileira também podem ter influenciado o padrão de prevalência da resistência. Em detalhe, além das análises genéticas e estatísticas, foram também utilizadas ferramentas de imunoinformática (baseadas em inteligência artificial) para investigar possíveis fatores envolvidos na falha terapêutica e na transmissão de vírus resistentes. Os resultados sugeriram um possível impacto de fatores genéticos na prevalência de K65R, derivados dos perfis HLA – relacionados à resposta imunológica – mais ou menos prevalentes na população brasileira. A análise indicou que o perfil HLA-B27 poderá ter mais capacidade de promover uma resposta imune contra o HIV-1 com a mutação K65R, sendo que este perfil genético tem prevalência relativamente baixa na população brasileira. Esta temática está a ser alvo de estudos adicionais, pois pode ser importante para a definição de protocolos de tratamento mais eficazes.
Uma conclusão que queremos também destacar é a evidência de transmissão de vírus com a mutação K65R. Apesar de ser considerado um fenómeno não muito frequente, o nosso estudo de larga escala permitiu encontrar evidências que suportam 21 cadeias de transmissão de VIH com a mutação. Estas cadeias de transmissão incluem pessoas no Brasil e noutros países e reforçam a importância de combater as doenças infeciosas e o aparecimento de resistência aos tratamentos de forma coordenada e global.
O estudo levanta também reflexões relativas ao contexto português de investigação em VIH/SIDA e outras doenças. Em Portugal a obtenção de dados nacionais e de qualidade para investigação (por exemplo: tipo de fármacos, duração do tratamento, sequências virais, indicadores laboratoriais ou outros) é extremamente difícil. O principal fator limitante é a dispersão dos dados por diferentes hospitais, onde são recolhidos e armazenados heterogeneamente. Tal como se verificou em relação aos dados sobre COVID-19, também em relação à VIH/SIDA há um grande percurso a ser percorrido em Portugal até ser possível obter dados nacionais de qualidade que permitam potenciar trabalhos de investigação científica. Assim, a investigação com dados portugueses é limitada ao contexto de projetos que normalmente apenas incluem alguns hospitais. O Brasil tem o mérito de, apesar de ser um país muito maior que Portugal, ter criado serviços centralizados e especializados, que mediante autorização ética fornecem dados anonimizados e de qualidade que têm um enorme valor para o entendimento da evolução da pandemia de VIH, guiando novas e melhores formas de controlar esta doença.
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