Fontes do setor da dança contactadas pela agência Lusa exprimiram a urgência em retomar a atividade, sobretudo para quem não tem apoios, e, em simultâneo, os receios em relação a normas anunciadas pelo Ministério da Cultura para o combate à pandemia covid-19.
De acordo com o plano de desconfinamento do Governo, os teatros e salas de espetáculos vão poder abrir portas no próximo dia 01 de junho, com regras sanitárias, mas sem exigir o uso de máscara pelos artistas em palco.
Para a coreógrafa e bailarina Vera Mantero, da estrutura O Rumo do Fumo, o documento oficial enviado aos profissionais das artes de palco “é muito fraco, e parece não ter base científica e técnica”.
“Por tudo o que tenho lido sobre o vírus, não faz sentido os bailarinos irem sem máscara para o palco e tocarem-se. O palco não é uma ilha milagrosa que os vai proteger”, comentou.
A bailarina duvida até que o público queira ver “artistas sem máscara, a rebolarem-se uns nos outros em palco, quando é pedido às pessoas o distanciamento social para proteção de todos”.
“É uma exigência brutal que não faz sentido, é inaceitável e parece-me de grande irresponsabilidade ser permitido” estar em palco sem máscara, reiterou.
O Ministério da Cultura enviou um documento às estruturas artísticas que não obriga uso de máscara para os artistas em palco, nem a realização de testes ao novo coronavírus.
O documento recomenda, mais concretamente, que “cada estrutura avaliará e decidirá se o acesso de equipas artísticas/companhias aos palcos do teatro ou sala de espetáculo deve ou não ser precedido da realização de testes para a covid-19”.
Por outro lado, Vera Mantero diz que muitos artistas do setor da dança “estão confusos, divididos, e a viver uma grande incerteza, porque quem não tem apoios nenhuns precisa de trabalhar para sobreviver”.
“Ficamos entalados entre a necessidade de sobrevivência e cumprir as regras”, acrescentou, comentando ainda que também os teatros e salas de espetáculos “estão a avaliar se vale a pena reabrir com tão poucos espetadores presentes”, devido ao distanciamento social exigido nos auditórios.
“Se uma sala com 600 lugares só pode receber 150 espetadores, compensa a receita que vai ter?”, questiona.
O Rumo do Fumo é uma estrutura artística que está a receber apoio da Direção-Geral das Artes, mas Vera Mantero recorda que, quem é ‘freelancer’ e não tem apoios está a viver uma situação “dramática”: “Este setor está parado e a morrer. É um problema gigantesco”, alerta.
Tal como os profissionais do teatro, também na área da dança, as estruturas receberam as orientações e têm estado a dar o seu contributo, como lhes foi pedido pelo Ministério da Cultura, de forma a aplicar as medidas quando os palcos reabrirem.
As normas incluem uso de máscara para os técnicos de atendimento ao público e aos assistentes de sala, viseira, luvas descartáveis, roupa e calçado de trabalho e uso de gel desinfetante individual.
Também recomenda a desinfeção e higienização das salas e espaços comuns, camarins individuais, palco limpo de hora a hora, primeira fila sem espetadores e espetáculos sem intervalos.
Contactada pela Lusa, a Rede – Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea, que representa cerca de 40 entidades e artistas do setor, recomenda também “cautela” na reabertura dos palcos.
“Sobretudo apelamos a uma responsabilidade para a reabertura, que deve ser segura para todos os profissionais e para o público, a todos os níveis”, disse à Lusa Mariana Amorim, da direção da associação.
A responsável disse que distribuiu as normas enviadas pelo Ministério da Cultura aos seus associados, que, por seu turno, deram o seu parecer, mas ainda é aguardado o aval final sobre o documento, da Direção-Geral da Saúde.
“Parece-nos cedo para a retoma da atividade porque ainda há muitas dúvidas e receios sobre o contágio, mas, por outro lado, muitos profissionais estão parados e não têm apoio ou qualquer fonte de rendimento. Estes estão em situação muito precária”, alertou.
Embora desejosa do regresso à normalidade, a associação partilha as mesmas dúvidas sobre o uso de máscara em palco: de um lado está a necessidade de proteção dos profissionais, do outro as características do trabalho artístico em dança.
“Imaginar a prática da dança com máscara é impossível, pelo incómodo que dá aos artistas, no entanto, temos de ser responsáveis e conscientes”, avaliou.
Mariana Amorim disse que esteve recentemente a assistir a um concerto no estrangeiro, onde os espetadores estavam separados e com máscara, e no palco, os músicos sem máscara e afastados. Pareceu-lhe “um cenário dantesco”.
“A dança implica por si só transpirar e tocar”, apontou, pondo ainda dúvidas sobre se as coreografias resultam em palco, ao cumprir as normas.
Entre os associados da Rede há diferentes posições: “A maior parte não está confortável com a ideia de não usar máscara, até porque também envolve as suas famílias. E há artistas que têm doenças crónicas e são de risco”, lembrou.
Quanto aos teatros e salas de espetáculos, recorda que a maioria cancelou os espetáculos até setembro.
Clara Andermatt seguiu essa linha de pensamento, e cancelou todos os seus espetáculos até ao final do ano.
“Não fazia sentido e parece-me um bocado precipitado reabrir já” as salas de espetáculo, comentou à Lusa a coreógrafa e bailarina, ressalvando que, “para alguns formatos, pode ser fazível”.
A criadora ía estrear uma peça em maio, para a Companhia Nacional de Bailado – “O Canto do Cisne”, remontagem de uma coreografia para o antigo Ballet Gulbenkian – que terá agora de reagendar.
Os cancelamentos, adiamentos e reagendamentos, que eram situações excecionais nas programações culturais antes do início da pandemia, tornaram-se correntes nos dias de hoje.
“O setor da cultura está transformado num deserto, e muitos artistas a passar dificuldades e uma grande incerteza”, avalia a coreógrafa, que também pede “sensatez” no gradual regresso à normalidade.
Da mesma forma, sublinha que a dança “tem aspetos muito próprios, pela sua prática física, que exige contacto próximo constante, um respirar dos bailarinos uns em cima dos outros”.
Para Clara Andermatt, “há um trabalho a fazer”, antes do regresso, que passa pela preparação e adaptação de equipas, instalações, aspetos técnicos e sanitários, “com o devido tempo”.
Portugal entrou no dia 03 de maio em situação de calamidade devido à pandemia, depois de três períodos consecutivos em estado de emergência, desde 19 de março.
Esta nova fase de combate à covid-19 prevê o confinamento obrigatório para pessoas doentes e em vigilância ativa, o dever geral de recolhimento domiciliário e o uso obrigatório de máscaras ou viseiras em transportes públicos, serviços de atendimento ao público, escolas e estabelecimentos comerciais.
De acordo com os números divulgados hoje pela Direção-Geral da Saúde, Portugal contabiliza 1.289 mortos associados à covid-19, em 30.200 casos confirmados de infeção.
Em relação ao dia anterior, há mais 12 mortos (+0,9%) e mais 288 casos de infeção (+1%).
LUSA/HN
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