Luciana Frade Mestre em Medicina pela Charles University, CZ Médica interna de Medicina Interna (5 ano) Centro Hospitalar Lisboa Ocidental Colaboradora voluntária com APELA Mestranda 2.ano do Mestrado Cuidados Paliativos - Universidade Católica Portuguesa

Multidisciplinaridade e Cuidados Paliativos na ELA!

11/27/2020

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Multidisciplinaridade e Cuidados Paliativos na ELA!

27/11/2020 | Consultório

A esclerose lateral amiotrófica (ELA), retrato de um percurso inevitável de evolução crónica, degenerativa, progressiva, incurável e complexa não pode dissociar-se ad initium dos Cuidados Paliativos. Acontece que a doença oncológica possa não ter acesso a tratamentos oncológicos? Acontece que a doença renal crónica em fase terminal não seja abordada por terapêutica de substituição da função renal? Acontece que um evento neurológico agudo não tenha acesso a medicina física e de reabilitação? Porque acontece então que uma patologia neurológica, degenerativa e agressiva como a ELA possa ainda tantas vezes percorrer um caminho francamente sofrido que culmina em morte sem ter o tratamento e apoio que lhe é devido e preconizado cientificamente. Não serão estes doentes detentores dos mesmos direitos de acesso aos cuidados de saúde adequados? Estaremos a fazer saúde à parte do que nos dizem as guidelines e a ciência?

Segundo as EFNS guidelines on the Clinical Management of Amyotrophic Lateral Sclerosis1 a abordagem clínica a estes doentes deve incluir uma equipa multidisciplinar de forma a chegar a todas as suas necessidades (controlo de sintomas, comunicação, fisioterapia, gestão da nutrição, abordagem de questões sociais, espirituais, manejo da angústia etc.). Relembro a importância do detalhe em Cuidados Paliativos no impacto direto dos cuidados ao doente.

O mesmo documento diz-nos que esta equipa deverá ser composta por neurologista, gastrenterologista, medicina física e reabilitação, assistente social, terapeuta ocupacional, terapeuta da fala, fisioterapeuta, nutricionista, psicólogo e clínico de cuidados paliativos. Repito, clínico de cuidados paliativos como parte integrante e fundamental de todo o doente com patologia incurável e inevitavelmente complexa. Podemos ler ainda que o doente de uma forma geral deve ser reavaliado a cada 2-3 meses, no entanto deve existir um contacto regular entre família/doente pela equipa de suporte entre consultas. Quem está a fazer este apoio?

A Neurologia apresenta um papel vital no reconhecimento precoce de sinais e sintomas, bem como no diagnóstico da doença. No entanto, após esse diagnóstico e com o decorrer da doença, surge um espectro de necessidades que não pode e não deve ser assegurado exclusivamente pela especialidade dada a necessidade de uma abordagem multidisciplinar, frequente, contínua, diferenciada (nomeadamente no controlo sintomático). A ELA não tem hora e dia marcado, não pode esperar pela próxima consulta. Assim, como infelizmente ainda muito se observa, o clínico que diagnostica, não tem muitas vezes uma plataforma de suporte a estes doentes após identificação da doença. O doente é medicado com terapêutica modestamente modificadora da qualidade/tempo de vida, em alguns centros referenciado para suporte ventilatório e nutricional (PEG) e de pouco mais se constitui a equipa. Assim, temos assegurado: alguém que analisa neurologicamente a evolução e degradação do doente, alguém que apoia a ventilação (comprovado cientificamente o seu benefício, não necessariamente na dispneia, vulgo “falta de ar”) e garantimos a alimentação. Sem dúvida três aspetos fundamentais do núcleo de assistência, com os quais não nos preocupamos porque são uma garantia. Perguntemo-nos agora, no dia que surge alteração da fala, dificuldade na comunicação, no dia em que o doente fica verdadeiramente isolado, que solução estamos a ter para estes doentes? Têm todos acessos a terapeuta da fala? Quem está a trabalhar o doente no sentido da prevenção da queda (numa fase inicial), de exercícios de relaxamento muscular, de cinesioterapia respiratória (complementar à terapêutica), técnicas de recrutamento? A fisioterapia é uma realidade universal? Quando o doente deixa de ter capacidade de se alimentar de forma fisiológica e de forma a responder às suas necessidades, que aconselhamento tem disponível, quem poderá ajudar a encontrar alternativas que satisfaçam o doente (do ponto de vista prazeroso que também é qualidade de vida), adequar medidas? Existe apoio nutricional? 

E pergunto agora, quando surge dor, no dia que surge sialorreia, no dia que surge xerostomia, espasticidade muscular, insónia, no dia que surge farfalheira, dificuldade respiratória (inevitável o seu surgimento com progressão de doença), obstipação, angústia e sofrimento psicológico, problemas relacionados com espiritualidade, unfinished business, preparação a morte, abordagem do luto, quem está a fazer esse trabalho? Na maioria dos casos, ninguém. Não é uma realidade universal para todos eles a referenciação precoce a cuidados paliativos. Diagnóstico de ELA ainda não é equivalente a referenciação imediata e acesso a Cuidados Paliativos em Portugal. Assumimos, portanto, de forma clara e bem objetiva aos olhos de todos que o doente pode e vai enfrentar o sofrimento da ausência de cuidados/tratamentos dirigidos e adequados à sua fase de doença. É a dura realidade que vivemos. Não resta outra alternativa a estes doentes que recorrer ao Serviço de Urgência, receber uma abordagem de doente agudo e regressar ao mar onde navega sem rumo.

É um facto que profissionais diferenciados em CP não abundam, mostra-nos o relatório do Observatório de Cuidados Paliativos da Universidade Católica Portuguesa2, a título de exemplo, que existe o equivalente a 66 médicos quando deveria existir para a nossa realidade nacional cerca de 496; 243 enfermeiros quando deveria existir 2384; 17 psicólogos quando deveria haver 195 e a 22 assistentes sociais quando deveria de haver 195. É um facto que sem recursos não se pode chegar a todo o lado, mas certamente sem identificação e reconhecimento que é vital uma abordagem multidisciplinar para que estes doentes tenham qualidade de vida, mesmo com profissionais disponíveis, manteremos um cuidado desajustado e deficiente. Urge garantir recursos, urge alterar mentalidades.

 

  1. EFNS guidelines on the Clinical Management of Amyotrophic Lateral Sclerosis (MALS) – revised report of an EFNS task force European Journal of Neurology 2012, 19: 360–375, doi:10.1111/j.1468-1331.2011.03501.x.
  2. https://ics.lisboa.ucp.pt/asset/4181/file

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