Maria Eugénia Saraiva: “As pessoas continuam a ter medo e a não dizer que vivem com esta infeção”

01/15/2021
O medo do desconhecido, o estigma e o receio de ser identificado como portador de Covid-19 parece ser um déjà vu dos anos oitenta, época em que surgiu a infeção por VIH.

A Presidente da Liga Portuguesa Contra a SIDA considera que “um dos maiores problemas que o mundo moderno enfrenta são as pandemia”. Preocupada com a falta de cuidados médicos e situação de pobreza de muitos utentes sublinha que a luta contra a qualidade de vida vai continuar a ser “uma prioridade” da liga. Admite que existe uma nova preocupação:  desvalorização da doença por parte de muitos jovens.

HealthNews (HN)- A LPCS surge na década de 90 com a missão de prestar apoio a doentes com VIH e para alertar a sociedade para a gravidade da doença. Como recorda a chegada do vírus a Portugal?

Maria Eugénia Saraiva (MES)- Há trinta anos a Liga surgiu quando todas as pessoas enfrentavam esta pandemia com o medo inerente que hoje vivemos em relação à Covid-19. Pouco se sabia. Todos temíamos um vírus desconhecido. Falo inclusive de profissionais de saúde que foram aprendendo a lidar com a infeção por VIH e a doença por SIDA. Era uma doença que estava associada a uma mortalidade elevada e aos chamados “grupos de risco”. Havia um rótulo ligado aos artistas, a músicos, a cantores, a celebridades, como por exemplo o António Variações, em Portugal, que faleceu em 1984 e o Rock Hudson, em Hollywood, que faleceu em 1985, dois dos primeiros artistas conhecidos a morrer por complicações de saúde agravadas pelo VIH e SIDA. Mas para além das pessoas a verem como uma doença dos artistas, também associavam a outros grupos, como os que incluíam homossexuais, toxicodependentes e prostituição.

Hoje, conseguimos falar desta epidemia não colocando a nota em “grupos de risco”, mas sabemos que existem populações mais vulneráveis e com um risco mais elevado de exposição às infeções sexualmente transmissíveis (IST). Sabemos que se não nos protegermos e usarmos o preservativo numa relação ocasional, qualquer um de nós pode ficar infetado.

HN- Continua a prevalecer o estigma?

MES- Existe ainda o vírus do estigma e da discriminação associado ao VIH e é sentido pela maior parte das pessoas que vive com a infeção, direta e indiretamente. Comparativamente há 30 anos, o estigma era sentido de forma diferente, levando ao isolamento e até ao ostracismo, mas hoje as pessoas continuam a ter medo e a não dizer que vivem com esta infeção, pelo receio de serem julgadas, muitas vezes pela própria família e pelo seu núcleo de amigos. Hoje este mesmo vírus, faz com que muitas pessoas tenham dificuldade em dirigir-se à unidade móvel de rastreio “Saúde + Perto”, para saberem se estão infetadas, sem sentir o auto-estigma. A perceção destas pessoas é a que ao entrarem numa estrutura relacionada com o VIH, podem ser julgadas ou apontadas e até identificadas. Esta é a nossa grande preocupação. Temos de combater este vírus social associado a infeção por VIH e outras IST e passar a mensagem que todos podemos nos infetar se não nos protegermos e por isso a mensagem da prevenção continuar a ser atual e tão importante.

HN- Há pouco mencionou alguns fatores de semelhança entre a forma como a Covid-19 é encarada e a forma como a infeção por VIH o foi há trinta anos. Existem paralelismos?

MES- Um dos maiores problemas que o mundo moderno enfrenta são de facto as pandemias. A pandemia por vírus de imunodeficiência humana (VIH) e que levou a que muitos contraíssem a doença (SIDA) quando surgiu na década de oitenta foi também sentida como uma ameaça. O medo do desconhecido fez com que muitas pessoas tivessem reações como aquelas que hoje assistimos face ao Covid-19, por ser uma doença nova e sobre a qual a ciência e os especialistas ainda não têm muitas respostas. Não podemos dizer que não existe semelhanças entre o VIH e a Covid-19, quando alguns grupos, nomeadamente os profissionais de saúde, sentem o estigma associado à doença. E é o medo de ser estigmatizado, que pode levar algumas pessoas a não realizarem o teste de rastreio tão cedo quanto possível e desejável e a esconder os sintomas da infeção e doença para evitar serem alvos de discriminação. O paralelismo que fazemos é em relação às pandemias que surgem e à mortalidade associada a estas pandemias.

E naturalmente à relação que existe com o fator da prevenção. No caso do novo coronavírus falamos na higienização das mãos e da etiqueta respiratória, do uso de máscara… há trinta anos falávamos no uso do preservativo como o método mais importante para não transmitirmos a infeção e para não nos infetarmos. Em termos de mensagem é igual: todos somos vulneráveis para contrair este tipo de infeções e todos temos de cuidar de nós e dos outros, utilizando as devidas proteções. À semelhança do VIH, o mais importante é:  promover a educação para a saúde e a prevenção da doença, rastrear para diagnosticar o mais precocemente, tratar todos de forma adequada e atempadamente e combater o estigma com mensagens claras, baseadas em dados e factos científicos fiáveis, reduzindo o stress de todos aqueles que vivem com a doença e para a doença, nomeadamente os profissionais do SNS mas também aqueles que complementam o SNS, com o suporte clinico e social integrado como a Liga e outras instituições o fazem.

HN- Muitas conquistas foram alcançadas nos últimos trinta anos nesta área. Não teme que a pandemia evapore o trabalho até agora conquistado em Portugal?

MES- Ao longo destes últimos trinta anos, a Liga Portuguesa Contra a SIDA tem procurado lutar pela qualidade de vida das pessoas que vivem com a infeção por VIH entre outras infeções sexualmente transmissíveis. A qualidade de vida tem vários domínios, nomeadamente, a variável psicológica, emocional, sexual, física, social e económica e o apoio integrado da Liga tem procurado ir ao encontro das necessidades e bem-estar físico e psicológico dos nossos principais destinatários. A qualidade de vida destes é por isso uma prioridade a manter, principalmente em tempos de Covid-19. Para tal é necessário que os doentes tenham acesso a cuidados de saúde, mantenham as suas consultas, realizem as análises, e tenham acesso à medicação e tenham uma boa adesão terapêutica. Para isso, a Liga tem procurado alertar a sociedade, mas também os órgãos de soberania, que para além da Covid-19 existem outras infeções e doenças que merecem a atenção de todos. Este é o nosso papel.

HN- De que forma a associação se adaptou à pandemia?

MES- Desde o início da pandemia que nos mantivemos no terreno. Alargámos o horário de atendimento da linha SOS SIDA, que com a experiência de 30 anos e do saber dos técnicos de saúde que a constituem, pode fazer a gestão da informação, do stress e da ansiedade de quem nos procurou neste último ano e continua a procurar. Procurámos ter uma escuta ativa e disponibilidade para todos que numa primeira fase se mostraram assustados e perdidos. Era essencial transmitir uma informação clara e credível e por isso os técnicos precisaram de estar permanentemente atualizados com a informação facultada pela Direção-Geral da Saúde (DGS). Quando percebemos que as pessoas tinham dificuldade e receio em dirigir-se às nossas unidades móveis, adaptámo-nos e fizemos reajustamentos para servir os nossos principais destinatários. Começámos por fazer o levantamento da medicação nos hospitais e entregar a mesma aos utentes. Quando as farmácias hospitalares encerraram, mantivemos o levantamento nas farmácias comunitárias e, através dos nossos profissionais e técnicos de saúde, entregámos e enviámos a medicação antirretroviral e outra que nos solicitavam, de forma a que os utentes não se expusessem à Covid-19. Nestas entregas incluímos outros bens de primeira necessidade, nomeadamente bens de higiene e alimentação, tendo em conta o isolamento físico de alguns utentes. Esta adaptação de serviços foi também importante para que os utentes se sentissem seguros e sentirem que, apesar do SNS nem sempre conseguir dar respostas atempadas, a Liga Portuguesa Contra a SIDA está disponível para apoiar como sempre teve.

HN- Estamos a atravessar um período de incerteza, inclusive para os doentes seropositivos. A nível político existem recursos para garantir a segurança e o sustento de um doente que fica em situação de desemprego?

MES- Não há diferenças para uma pessoa que vive com VIH ou com outra infeção ou doença. Neste momento estamos todos no mesmo barco, com todos os receios inerentes à situação económica e financeira do país e do mundo. Contudo, existem populações mais vulneráveis do que outras e o que temos assistido por parte dos utentes que nos procuram, relaciona-se com um aumento de pedidos de apoio social, relacionados com a situação profissional, com empréstimos que não se conseguem pagar, e que o apoio jurídico da Liga tem apoiado, com os bens de primeira necessidade, nomeadamente a alimentação. Existe uma pobreza envergonhada de pessoas que recorriam aos nossos serviços, mas que não tinham estas dificuldades porque tinham emprego e isso independentemente de viverem com VIH, hepatites virais ou outra doença. Para a Liga não existe diferença. Todos que nos procuram são utentes e todos têm que ser atendidos, podendo ser encaminhados e orientados para outros serviços e/ou parceiros sociais.

Do nosso lado, tentamos incluir todos em situação de exclusão e carência. Dando o nosso melhor e de forma empática, através dos apoios disponibilizados que continuam a ser gratuitos e confidenciais. Não conseguimos dar um ordenado, não conseguimos um emprego no imediato, mas temos apoiado estas pessoas através de realização de currículos, através de medidas de reabilitação e de inserção social e dos apoios disponíveis. Dentro das nossas possibilidades, e sem poder dar qualquer apoio financeiro, reencaminhamos e incluímos estes doentes em medidas de apoio estatais.

HN- A LPCS tem também sentido algumas dificuldades?

MES- De facto nós próprios enquanto Liga, sentimos as dificuldades inerentes à escassez de entrada de donativos, porque dificilmente conseguimos receber donativos, quando perdemos sócios e quando os nossos associados perdem os seus empregos e vemos as pequenas e médias empresas que sempre nos apoiaram a serem encerradas. Acreditamos no poder da informação dos órgãos de comunicação social, que dão voz a estas associações de solidariedade e foi neste contexto que Portugal respondeu ao apelo da Liga quando dissemos não ter equipamentos de proteção, para os técnicos e os profissionais de saúde que servem os utentes que nos procuram, mas também para estes que precisavam de ser protegidos por nós. Acreditamos por tudo isto e pelos 30 anos da Liga, que melhores tempos virão e queremos acreditar que embora esta pandemia já nos tenha causado tantos danos e perdas irreparáveis, os desafios com que nos deparamos serão transformados em oportunidades, fazendo com que mais pessoas se liguem à causa e nos apoiem com o que puderem e não lhes fizer falta e a isto chama-se solidariedade.

HN- Sobre o contributo da associação, a LPCS foi distinguida em setembro com o Prémio Nacional de Psicologia. Como vê este reconhecimento?

MES- Os prémios são reconhecimentos e estes fazem sempre com que nos sintamos responsáveis para continuar a fazer mais e melhor por quem já vive sem defesas. Este reconhecimento é merecido pelo trabalho desenvolvido ao longo destes últimos anos de dedicação de todos os psicólogos, os de ontem e os de hoje e é um incentivo para continuar a prática das ações e gestos solidários tão importantes para a missão que nos propusemos há trinta anos. De facto, a psicologia faz parte das equipas multidisciplinares que a LPCS tem desde sempre e exemplo disso é o orgulho que sentimos, quando vemos surgir outras linhas de apoio, com profissionais e técnicos de saúde mental à semelhança da Linha SOS SIDA que implementámos em 1991.

HN- Em outubro, data em que a associação assinalava o trigésimo aniversário, lançaram uma campanha com a mensagem “Na SIDA Existe Vida”. Hoje em dia as pessoas podem olhar esta doença como uma condição em que é possível ter uma esperança de vida normal?

MES- Em outubro iniciámos a celebração dos 30 anos que se prolongará por este ano. Começámos por lançar a nova identidade visual e sem romper com o passado e a missão a que nos propomos desde o ano da fundação da Liga, com o objetivo de nos aproximarmos dos mais novos, que não viveram a pandemia do VIH. A desvalorização de muitos deste jovens com quem nos cruzamos, preocupa-nos na medida em que face a esta infeção e outras IST, os mesmos refiram que pela mesma já ter um tratamento não há necessidade de se protegerem e por isso a aposta na promoção e educação para a saúde e a literacia em saúde dos jovens, que frequentam o ensino secundário e universitário ser uma prioridade para a Liga.

Ao mesmo tempo, lançámos a campanha “Na SIDA Existe Vida” quisemos mostrar que existe vida para além da infeção. E a Liga é prova desta vida. Quisemos mostrar que não faz sentido o estigma e a discriminação que existe associado ao VIH porque hoje uma mulher com VIH pode ter um filho, porque hoje um casal serodiscordante com carga viral infetável pode ser intransmissível (I=I), desde que tenha uma boa adesão terapêutica, porque hoje uma mulher ou um homem seropositivos para o VIH podem ter uma carreira profissional de êxito. Que o tratamento como PrEP e a PPE também são prevenção, tal como o uso consistente do preservativo. Podemos por isso afirmar que sim, Na SIDA Existe Vida.

HN- Quais os aspetos que poderiam ser melhorados ao nível da qualidade de vida dos doentes?

MES- É fundamental informar e dialogar com os doentes Este é outro dos papeis da Liga, quando descodifica a linguagem dos médicos que por vezes nem sempre é acessível para os utentes que a ouvem. É fundamental que estes doentes tenham acesso a tratamentos adequados e atempados e com equidade na sua distribuição, para que tenham direito à saúde efetiva. Sabemos que cada caso é um caso. Sabemos que uns podem continuar a ter uma toma diária e outros continuarão a ter mais do que um comprimido para tomar, mas é importante que seja explicado às pessoas o porquê, e porque a adesão terapêutica é tao importante. Em suma, não podemos cruzar os braços, nem deixar que a COVID-19 coloque em segundo plano todas as outras infeções e doenças e temos que continuar a apostar no rastreio para diagnosticar precocemente, na promoção e educação para a saúde e prevenção da doença, na literacia em saúde, na adesão terapêutica e na supressão da carga viral, combater os diagnósticos tardios de forma a que as pessoas não cheguem aos hospitais no estadio de SIDA e ou com outras comorbilidades associadas ao VIH e a discriminação e o estigma associados às pessoas que vivem com VIH Só assim atingiremos o objectivo 95 – 95 – 95 proposto pela UNAIDS em 2030.

Entrevista por Vaishaly Camões

1 Comment

  1. J. Albano Figueiras

    Sou seropositivo ha quase 30 anos e concordo em tudo quanto diz a Maria Eugénia, alguém que admiro muito e conheço bem.
    No entanto perguntarem a alguns do positivos para a Covid se sentiram este estigma, se vêem de outra forma o estigma dos seropositivos do VIH, a realidade é que acham que não porque “o virus” é pior. Porém não é verdade. Ambos matam e o sars-cov-2 nem tem, para os que o têm a possibilidade de se tratarem com a terapia anti-vih e poderão de resto ter sequelas, elas próprias passíveis de estigmatização, como as afeccoes neurológicas.
    A verdadeira doença é social e é comum. Em ambas as doenças se culpabiliza, quem infecta e quem está infectado. Enquanto doentes e a sociedade como um todo se continuar a tratar-se assim, haverá sempre outra pandemia, a do estigma.
    É que agora não se pode acusar os seropositivos VIH de maldade, incúria ou inconsciência quando vemos a medicina de catástrofe surgir em todo o lado por todas essas razões e outras mais e por “culpa” de uma gigantesca parte dos portugueses. Então e agora? Quem pode lançar a primeira pedra? Quem é “digno” de ser objecto de estigma?
    Há um processo de cura que a sociedade se deve e nos deve há quase 40 anos.
    Pois que nasça essa consciência.

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