Ricardo Mexia: “Não sabemos com que proporção de pessoas vacinadas iremos atingir a imunidade de grupo”.

30 de Abril 2021

Ricardo Mexia Presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública

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Ricardo Mexia: “Não sabemos com que proporção de pessoas vacinadas iremos atingir a imunidade de grupo”.

15 de agosto? 22 de setembro? Não é possível fazer prognósticos, diz Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública. Ainda não é claro o calendário de chegada de vacinas e, por outro lado, cobertura vacinal de 70% e imunidade de grupo não são conceitos unívocos ou intermutáveis. Mas uma coisa é certa: quanto mais rapidamente avançar a vacinação, mais longe estaremos do drama que vivemos em janeiro.

HealthNews (HN) – Qual tem sido o papel das vacinas no aumento da esperança de vida das pessoas, a nível global?

Ricardo Mexia (RM) – As vacinas são das medidas de Saúde Pública mais eficientes, eficazes e custo-efetivas. Têm permitido salvar milhões de vidas ao longo dos anos.

O aumento da esperança média de vida, à escala mundial, também se deve ao surgimento das vacinas, a par de outras questões, tais como o saneamento, os antibióticos e a capacidade de tratar algumas doenças infeciosas.

HN – Nunca falámos tanto de vacinas como atualmente. Mas existem algumas questões preocupantes. Por exemplo, uma sondagem recente, efetuada em vários países, mostra que uma percentagem relevante de pais terá adiado a vacinação dos filhos devido ao receio de contágio da Covid-19. Esta questão poderá exigir uma atenção especial nos próximos meses, em termos de Saúde Pública?

RM – Terá de existir uma intervenção clara nesse domínio. É fundamental perceber que temos um conjunto de doenças que são controladas, precisamente, por taxas de cobertura elevadas. Quando as taxas de cobertura diminuem, começamos a ter dificuldade em controlar essas doenças.

Já vimos isso nalguns países europeus, ainda antes da pandemia, com a descida das taxas de cobertura e a existência de surtos. O caso do sarampo é paradigmático. A redução na cobertura vacinal tem levado à manutenção de um número elevadíssimo de casos, principalmente em Inglaterra, França e no Leste europeu.

É fundamental reforçar a vantagem e o interesse de cumprir o programa de vacinação. No caso português, por exemplo, nunca esteve suspenso, ou seja, mesmo durante a pandemia, todos os cidadãos, incluindo as crianças, sempre puderam usufruir do Programa Nacional de Vacinação (PNV) e ser vacinadas nos tempos adequados.

Em várias vacinas, existe um intervalo de tempo em que a vacinação pode ocorrer. Portanto, poderá ter existido alguma flexibilização, por parte dos pais, em relação ao momento da vacina mas, assim que for oportuna a sua administração, todos devem deslocar-se às unidades de saúde para o fazerem.

Existe uma grande pressão sobre o sistema de saúde devido às questões relacionadas com a Covid-19, mas as restantes não podem ser ignoradas. A questão da vacinação é muito importante porque não queremos adicionar a um problema já de si bastante complicado, como é a pandemia Covid-19, um problema adicional de surtos por outras doenças que são facilmente evitáveis pela vacinação.

HN – Em relação ao Plano de Vacinação Covid-19, a Agência Europeia de Medicamentos (EMA) recomendou a utilização das vacinas da AstraZeneca e da Janssen somente acima dos 60 anos. Mesmo assim, a possível ligação entre a administração das vacinas e a ocorrência de eventos trombóticos continua a preocupar as pessoas…

RM – É muito importante que todos tenhamos a noção de que qualquer intervenção terapêutica tem vantagens e riscos. As vacinas são seguras e eficazes mas não não inócuas.

Estudos com dezenas de milhar de participantes comprovaram a segurança e efetividade destas vacinas, o que levou ao seu licenciamento. Mas quando em vez de dezenas de milhar, passamos a vacinar dezenas de milhões, acabamos por identificar efeitos secundários que não estavam descritos naquele grupo populacional mais pequeno.

Repare que, se há algo que acontece quatro vezes num milhão, num estudo com 100 mil pessoas é possível que essa circunstância não seja encontrada. Mas quando é identificada, deve ser adicionada àquilo que é expectável perante a vacinação. Os ensaios de fase IV, já com a chegada das vacinas ao mercado, são importantíssimos para identificar estas questões.

Agora, é manifestamente claro que as vantagens de ser vacinado excedem largamente os riscos que lhe estão associados. Se pensarmos neste valor de 4 por milhão e o compararmos com os números da mortalidade associada à Covid-19 no nosso país (17.000 casos), estamos perante ordens de grandeza totalmente diferentes. As vacinas atualmente disponíveis são seguras e eficazes.  Não há  dúvida nenhuma sobre isso.

HN – A administração da vacina da AstraZeneca começou por não ser recomendada às pessoas com mais de 65 anos. Não corremos o risco de gerar alguma perplexidade nas pessoas mais velhas, que são justamente aquelas que agora a vão tomar?

RM – Penso que é importante clarificar algumas questões. Para uma pessoa que assistiu à ciência a evoluir em direto, por vezes há coisas que são um pouco difíceis de compreender.

Com efeito, inicialmente a vacina da AstraZeneca era recomendada apenas para pessoas abaixo dos 65 anos. O que inverte essa lógica é natural que cause alguma perplexidade nas pessoas, mas tem uma explicação muito simples: na fase inicial, ou seja, nos ensaios que envolveram dezenas de milhar de indivíduos, não foram incluídas pessoas acima dos 65 anos. Portanto, não havia evidência do que iria acontecer se se administrasse a vacina nesses grupos populacionais. Mas, depois da sua chegada ao mercado, houve milhões de pessoas vacinadas com a vacina, e também acima dos 65 anos. O caso da Escócia é talvez aquele que apresenta números mais robustos em relação a essa matéria.

Esses episódios, apesar de raros, são eventualmente mais frequentes em pessoas de idades mais jovens e do sexo feminino. Com números tão pequenos, é difícil tirar conclusões sobre isso mas, aparentando existir esta diferença, registou-se uma inversão das indicações. Em vários países, a vacina passou, assim, a ser administrada acima dos 65 anos, em função do conhecimento que se foi desenvolvendo e reunindo.

Na sua opinião, as orientações da task-force sobre a vacinação contra a Covid-19 tornaram-se progressivamente mais claras?

O problema central do programa de vacinação é o facto do ritmo da chegada das vacinas ser baixo. Houve uma enorme dificuldade em conseguir vacinar a uma velocidade que todos desejaríamos que fosse substancialmente mais rápida.

A criação de grupos e de subgrupos que entretanto assumem maior prioridade, complica de forma importante a gestão e a programação do programa de vacinação. Portanto, quanto mais claras forem as regras e menos entropia houver em relação a essa matéria, melhor.

Espera-se que haja uma enorme clareza e transparência em relação a isso e que oportunamente as pessoas, quando chegar a sua vez, sejam efetivamente vacinadas. O que todos pretendemos é que a cobertura vacinal se vá expandindo da forma mais rápida e segura possível.

É claro que depende do ritmo de chegada das vacinas, mas se tudo correr como está previsto, podemos avançar já com alguma data em relação à imunidade de grupo?

Toda a gente gostaria de dizer que é no dia 15 de agosto, 22 de setembro ou outra data qualquer… Mas não é fácil fazer essa projeção, por duas razões: primeiro, como referiu, não é claro o calendário de chegada de vacinas e já todos percebemos que é bastante volátil. As coisas mudam rapidamente, fruto de várias circunstâncias, e não é fácil projetar e programar com essa enorme variabilidade. Depois, há outra questão que me parece absolutamente fundamental clarificar: a cobertura vacinal de 70% e a imunidade de grupo não são conceitos unívocos ou intermutáveis; são coisas diferentes.

Não sabemos exatamente com que proporção de pessoas vacinadas iremos atingir a imunidade de grupo. Agora, seguramente que quanto maior for a cobertura vacinal, maior será a flexibilidade para as diversas atividades que queremos e poderemos desempenhar.

Perante um aumento do ritmo de chegada das vacinas, é fundamental apostar numa aceleração do processo de vacinação, por forma a proteger o maior número de pessoas o mais rapidamente possível. “Vacina chegada; vacina administrada” é um bom princípio, que deve ser aplicado de forma muito clara para podermos progredir rapidamente na cobertura vacinal.

Neste momento, já é menos provável uma quarta vaga?

Eu não sei se é menos provável, o que me parece é que o drama que vivemos em janeiro, quer do ponto de vista da mortalidade, quer do ponto de vista dos internamentos, talvez não seja passível de ser repetido mesmo que façamos muita coisa mal, na medida em que uma parte importante das pessoas que estariam em maior risco, já estão vacinadas. Nomeadamente, aquelas que estão institucionalizadas, que são talvez as mais desprotegidas porque sabemos que têm uma enorme mortalidade associada.

Nesse sentido, penso que é improvável que tenhamos uma quarta vaga com a magnitude e com o prejuízo humano que tivemos em janeiro/fevereiro.

É possível que haja um aumento do número de casos nas próximas semanas, fruto da redução das restrições, mas cá estaremos para lhe responder e naturalmente que todos temos aqui um papel a desempenhar, precisamente para podermos continuar a retoma de um conjunto de atividades.

Preocupa-o a questão das sequelas da doença nas pessoas infetadas pelo SARS-CoV-2?

Ainda não conhecemos totalmente as implicações da doença no médio e no longo prazo. Portanto, é algo que a todos nós nos deve preocupar porque sabemos que em pessoas que até tiveram quadros mais ligeiros da doença, estão a surgir algumas sequelas importantes, desde cefaleias a queixas de falta de memória.

Há vários aspetos a que temos assistido que adicionam complexidade de médio e longo prazo a esta pandemia. Mas é uma área que seguramente, ao longo dos próximos tempos, iremos conhecer melhor e encontrar mais soluções.

Poderá ser necessário um reforço sazonal da vacinação?

Ainda não sabemos. Dependerá da duração da imunidade, que não resulta apenas dos anticorpos circulantes mas também da imunidade celular, que tende a ser um pouco mais duradoura do que a imunidade humoral.

Vamos aguardar para termos dados mais robustos sobre esta matéria, embora aparente haver, de facto, uma diminuição do nível de proteção com o avançar do tempo.

A pandemia encontrou a Saúde Pública sem meios. A recente entrada de especialistas no SNS constitui um reforço significativo?

 Classicamente, as unidades de Saúde Pública estavam em grandes dificuldades, com muito poucos recursos e sem um sistema de informação adequado. Era difícil responder melhor aos enormes desafios que se colocavam.

O processo de reforma da Saúde Pública, iniciado já há vários anos, tarda em 

materializar-se. A nossa expectativa é que, perante esta evidência da necessidade da Saúde Pública ter uma melhor resposta, melhores condições de trabalho e mais meios, a reforma se materialize e, em breve, estejamos em condições de voltar a desempenhar um conjunto de funções que são imprescindíveis para o funcionamento da comunidade e para melhorar a saúde das pessoas.

Após um período em que se verificou uma enorme redução dos ingressos no Internato de Saúde Pública e na sua capacidade formativa, a situação começou a inverter-se. A formação de um médico de Saúde Pública demora quatro anos e, na passada semana, 27 colegas terminaram o Internato. É um número importante de novos especialistas, que vem reforçar a resposta da Saúde Pública mas, na prática, a diferença não será tão grande como todos desejaríamos, na medida em que estes médicos internos, apesar de estarem em formação, foram muito relevantes na resposta à pandemia.

Portanto, não se trata verdadeiramente de um reforço, mas são 27 especialistas que passam agora a poder assumir outras responsabilidades, até de coordenação, na resposta à pandemia e outras ameaças à Saúde Pública.

HN – Por último, como encara a comemoração da Semana Europeia da Vacinação, neste momento tão crítico para a sociedade portuguesa e para o controlo da pandemia?

Aproveito para reforçar a ideia de que as vacinas são seguras e eficazes. Tendo oportunidade de se vacinar, todos devem fazê-lo para se protegerem a si próprios e protegerem aqueles com quem interagem habitualmente. As vacinas são uma das melhores ferramentas de Saúde Pública. Devemos muito a esta solução tecnológica.

Ao longo deste ano conseguiu-se desenvolver um número bastante elevado de vacinas para a Covid-19 quando sabemos que, tipicamente, eram necessários vários anos de desenvolvimento até uma solução vacinal poder chegar ao mercado. Este é, de facto, um enorme sucesso da ciência, que devemos por ao serviço dos cidadãos.

Entrevista de Adelaide Oliveira

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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