Uma das coordenadoras da coleção “Ciência, Tecnologia e Medicina na Construção de Portugal”, editada esta semana, Maria Paula Diogo frisou que um dos motores que levou à criação da coleção foi iluminar “a plêiade enorme” de cientistas, engenheiros e médicos e acrescentar as suas áreas “às mais tradicionais: a económica, política, social, institucional” porque o domínio científico “não é um reduto, um gueto, é algo que faz parte do território da História”.
“Quisemos contrariar a ideia que continua, por incrível que pareça, renitente em desaparecer, que é a ideia de que não há ciência, tecnologia e medicina em Portugal. Porque as pessoas acham que só há se houver Einstein, Darwin, Newton, Pasteur, o que seja. A ciência não se faz só com grandes luminárias, nunca se fez”, salientou a investigadora Ana Simões, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que com Maria Paula Diogo – Faculdade de Ciência e Tecnologia da Universidade Nova – fez a coordenação geral da coleção, que conta com artigos de mais de 80 autores.
As “luminárias” como o matemático Pedro Nunes ou os médicos Garcia de Orta e Egas Moniz – o único português galardoado com um prémio Nobel da área científica – são incontornáveis, mas as coordenadoras salientam que “há muitos participantes no empreendimento científico para além delas”.
Para Maria Paula Diogo e Ana Simões, um “personagem fascinante” que se tornou praticamente “invisível” na História apesar da sua influência é o abade José Correia da Serra, um naturalista que viveu entre 1750 e 1823 e que ilustra o “risco que os historiadores correm de pensar que, por se saber pouco sobre ele, não fez nada de jeito”.
Na verdade, Correia da Serra é “um naturalista considerado, ao nível de um [Alexander von] Humboldt, de um [Georges Cuvier]”, que foi um dos fundadores da Academia das Ciências e o primeiro embaixador português nos Estados Unidos, onde baseou a sua atividade diplomática e onde influenciou o desenho da política internacional norte-americana, nomeadamente o “Neutrality Act” de finais do século XVIII.
Com ligações à Maçonaria, Correia da Serra é um dos cientistas em estudo num projeto de investigação europeu sobre diplomacia científica, mas no seu próprio tempo acabou por ser votado à “invisibilidade”.
“Pode ter a ver com o facto de nunca ter escrito um tratado de botânica, ao contrário de colegas da altura. Optou por uma estratégia diferente, escrevendo artigos, e foi extremamente relevante na criação de comunidades de botânicos, criando a primeira grande comunidade de jovens botânicos nos Estados Unidos”, referiu Maria Paula Diogo.
“Há muitas vezes esta ideia de que, tirando o período áureo das Descobertas, a partir daí foi um constante declínio, que somos um país atrasado e continuamos a ser e há aí várias batalhas. Do ponto de vista internacional, o papel dos portugueses na chamada revolução científica não é reconhecido”, aponta Ana Simões.
No seu trabalho, realizado no âmbito do Centro InterUniversitário de História das Ciência e Tecnologia (uma colaboração entre a Nova e a Universidade de Lisboa), as autoras têm percebido que “a expansão é período relevante, mas os restantes não são menos, a construção historiográfica é que dá essa sensação”, resume Maria Paula Diogo.
“Como todos os países europeus, também tivemos ciência, tecnologia e medicina antes da expansão, a Idade Média não é um buraco negro”, mas o período das descobertas, marcado por avanços centrados na atividade náutica “acabou por criar uma noção errada”.
Maria Paula Diogo aponta, por exemplo, o período da Regeneração, a partir da segunda metade do século XIX, com os governos de Fontes Pereira de Melo, marcados por “engenheiros à volta do aparelho de Estado” e pela criação dos caminhos de ferro em Portugal, em que os aspetos científicos e tecnológicos “merecem duas linhas” em algumas Histórias de Portugal, o que produziu “um efeito de quase apagamento do que se fez após a Expansão”.
Na história da ciência em Portugal, há que “desmistificar ideias maniqueístas e muito redutoras”, defendeu Ana Simões, indicando o exemplo do que se passou durante o Estado Novo.
“Não faz sentido pensar que o Estado Novo, por ser um regime ditatorial, não tem ciência e, portanto, adotar acriticamente a ideia de que aquela visão mais ruralista não tinha um contraponto. Criaram-se treze laboratórios estatais muito importantes”, refere a investigadora.
Maria Paula Diogo acrescentou que ciência, tecnologia e medicina “nunca são neutras” e que “os cientistas envolvem-se em agendas políticas sem aquela benignidade que é a ideia do conhecimento universal”.
Por um lado, “não existem cientistas que não soubessem que estavam no Estado Novo” e, por outro, “os regimes usam a ciência, tecnologia e medicina nas suas agendas, criando às vezes na sociedade e na comunidade científica posições extremamente duras, como as grandes purgas nas universidades durante o Estado Novo ou o envio de cientistas menos adeptos do regime para as então colónias portuguesas”.
“Na realidade, as ciências, tecnologia e medicina são sempre excessivamente importantes para que o poder político não as utilize, é absurdo pensar que qualquer regime as põe de lado”, frisou Maria Paula Diogo.
A coleção, editada pela Tinta da China, está dividida nos volumes “Novos Horizontes (sécs. XV a XVII)”, “Razão e Progresso (séc. XVIII), “Identidade e ‘Missão Civilizadora’ (séc. XIX)” e “Inovação e Contestação (séc. XX)”.
A coleção vai até à transição para o século XXI, desde o pós-25 de Abril às alterações introduzidas na década de 1990 pelo ministro da Ciência Mariano Gago, até à “relação atual entre investigação científica e empresas”.
Mais do que acontecimentos pontuais marcantes, a história científica, tecnológica e médica em Portugal pode ver-se organizada em “grandes blocos temporais que marcam a cadência dos séculos” em diálogo com o resto da Europa, referiu Maria Paula Diogo.
A coleção vai ser apresentada no dia 13 de julho na Aula Magna da Universidade de Lisboa.
LUSA/HN
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