Luís Coelho Fisioterapeuta e escritor

Medicina, Filosofia e Economia

04/01/2022

O modelo biomédico não adversa, necessariamente, o conteúdo mais “historicista” da Filosofia, é, na verdade, o que o finaliza e reinicia. E, cerce à discussão epistemológica, a Economia possui, também, o seu lugar inseparável. Aqui se processa a medicina como centro nevrálgico de um genuíno mecanismo da complexidade (Edgar Morin 1).

Comummente, a medicina tem sido avocada enquanto adversa ao modelo psicossocial, mas a sua dualidade é a condição inalterável da cientificidade “positiva”. Esta traduz o “pathos” relativo a um Princípio dogmático de uma medicina pré-científica (Popper 2), afeita a uma escolástica, a uma lógica interna dialéctica, relativisticamente burilável. Aqui, a razão totalizadora encima uma realidade onde o “eu” possui pouca expressão. Já a reacção científico-liberal permite encimar a individualidade clínica, a dor, a doença, de um “eu”, que, por sua vez, implica o redesenhar da realidade epistémica.

A razão clínica consente equilibrar o dogma placebetário com o “Real” materialista, mas é, igualmente, um factor de mudança, de transformação, renovando, consecutivamente, a realidade racional, na medida em que, simultaneamente, a inicia e finaliza. Assim, o aspeito holístico passa a constituir, essencialmente, a resultante de uma razão “positiva” economicamente individualista, perpetrando-se a plena individuação ética, a partir da qual todas as mudanças se farão no pleito de uma segurança “estatista”. O “estatismo” conclui o liberalismo, mas este responde, constantemente, às mutações racionais do Estado. É destino que da estabilidade se involua para nova necessidade “positiva”, enquanto que a última possibilita compensar aquela, e, na mesma medida, identicamente os diversos “estados” holísticos permitem compensar o “todo” no caminho, sempre complexificável, para o Princípio dos Princípios (Fichte 3). Esta caminhar é de “eterno retorno”, e a Saúde é o próprio equilíbrio clínico estancando o processo.

O equilíbrio não demoniza a visão fragmentária do corpo frequentemente imputada ao modelo “biomecânico”, porque esse é o percurso necessário da “totalização”. É essencial que a moral clínica seja dual, e que o clínico tente abster-se de se transformar com o paciente. A acção clínica já compõe um mecanismo pós-moderno, recriando a realidade, que, entretanto, se preenche de uma nova moral monista. Esta é a novel “normalidade” de “racionalidade libidinal” (Marcuse 4), em que o terapeuta se funde com o paciente, criando o “excesso” subjectivo que logo se materializa na capital objectivação científica. Do mesmo modo que o “espírito” se materializa, também o “Estado” colectivista e dialéctico se cientifica na individualidade “dual”. E quantas “razões” existirem, tantas ciências se compõem numa “queda” permanente em que os modelos desempenham papéis obrigatórios e não exclusivos.

Da mesma maneira que a medicina permite compor, compensar, a mecânica aparentemente divisa do corpo, também todo o processo racional em questão permite compensar o Sistema mais abrangente, urdindo múltiplas possibilidades de Saúde, de “normalidade”, transcorrendo-se no “absurdo” (Camus 5). Bem vemos que os binómios Saúde vs. patologia, Estado vs. indivíduo, Dogma vs. ciência são, somente, a configuração necessária de um movimento neurótico, e são, que pluraliza os desafios da ciência médica.

O jogo de compensações é, similarmente, social, na medida em que o excesso dogmático de uns produz a reacção cientificista de outros, que, por sua vez, remete para a defesa dos dogmáticos, podendo nós obter, assim, um Colectivo mais placebetário ou mais libertário, com cada um patologizando o outro. O “pathos” é assumível nos termos de uma “moral do ressentimento” (Nietzsche 6), a Saúde é fazer as pazes com o Princípio.

A Saúde é, tal-qualmente, permutar os esquemas, fazendo a medicina conciliar-se com a Filosofia, do mesmo modo que a ciência médica deve render-se, cada vez mais, ao seu objecto totalizador, psicossocial, compreensivo, humanista e espiritual, sem que se perca o seu pleno vigor dual e racional, real e vitalista, responsável por fazer recriar consecutivamente o repto da equação existencial da “vida” (como em Michel Henry 7).

 

Referências bibliográficas

  1. Morin E. Introdução ao pensamento complexo. Instituto Piaget; edição original de 1990.
  2. Popper K. The open society and its enemies. Routledge & Kegan Paul, Ltd.; 1945.
  3. Fichte JC. Fundamentos da doutrina da ciência completa; Lisboa: Edições Colibri; 1794/1795.
  4. Marcuse H. Eros and Civilization – A philosophical inquiry into Freud. Boston: Beacon Press; 1966.
  5. Camus A. Le mythe de Sisyphe. Gallimard; 1948.
  6. Nietzsche F. Humano, demasiado humano. Edição original de 1878.
  7. Henry M. O começo cartesiano e a ideia de fenomenologia. Phainomenon. 13:179-190.

 

 

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