Quem mais depende do SNS é quem expressa mais críticas

09/15/2023
por Filipe Charters de Azevedo Especialista em modelos de risco

Em Portugal, aqueles que mais dependem do Serviço Nacional de Saúde (SNS) são, normalente, os que mais criticam a sua qualidade. O SNS não é uniforme na sua entrega de serviços de saúde, e tal é evidenciado por três grupos distintos: (1) aqueles que relatam uma condição de saúde menos favorável, (2) aqueles que enfrentam dificuldades de saúde na sua vida quotidiana e (3) aqueles que têm dificuldades em planear suas atividades diárias. Esses grupos são os que mais influenciam negativamente a avaliação do sistema de saúde português.

Relacionamos a democracia, especialmente em Portugal, com a igualdade no acesso aos cuidados de saúde. Numa ocasião como esta, em que comemoramos a democracia e a criação do SNS, podemos ponderar se não é hora de reavaliar algumas das práticas de gestão do SNS.

Os dados que sustentam estas observações são provenientes do European Social Survey, um amplo estudo europeu que avalia os valores, atitudes e sentimentos dos cidadãos em relação à sociedade e às políticas públicas. A data de recolha desta informação variou em cada país, mas neste caso em específico foi sempre antes da pandemia, quando os sistemas de saude funcionavam em velocidade cruzeiro. Este inquérito é um dos mais significativos na Europa devido à sua recolha regular, à pertinência das questões e à elevada qualidade em todo o trabalho de campo e de sistematização dos dados. A análise aqui efectuada centra-se sobretudo no sentido (o sinal) das correlações e na sua relevância estatística de forma a compreender o perfil de quem classifica menos bem ou mal o nosso sistema público de saúde.

É fundamental contextualizar esses dados. É natural que aqueles que dependem mais do SNS acabem por estar mais cientes de suas fraquezas e limitações, o que leva a avaliações menos favoráveis do sistema de saúde. Esse fenómeno também ocorre noutros países, onde os utentes que enfrentam dificuldades diárias devido a problemas de saúde tendem a expressar preocupações sobre as condições do seu sistema saúde nacional. No entanto, em Portugal, a correlação entre uma má autoavaliação do estado de saúde pessoal e uma avaliação negativa do SNS é mais pronunciada do que em países como Espanha, Itália, Grã-Bretanha ou Holanda.

Os dados deste questionário internacional também levantam questões sobre a avaliação do sistema de saude e daqueles com menor capacidade das pessoas de planearem o seu futuro. Esta é uma variavel chave para compreender o rendimento e a literacia financeira. Os dados indicam que aqueles que administram suas finanças “um dia de cada vez”, ou seja, sem poupança ou planeamento financeiro, tendem a ter uma visão menos positiva do SNS. Curiosamente, essa relação não é estatisticamente relevante nos países comparáveis como Espanha, Itália e Grã-Bretanha. A Holanda está na fronteira.

Finalmente, também é interessante notar a correlação entre a orientação política e a avaliação do sistema de saúde. Em Portugal, não existe uma relação clara entre a autoposição ideológica e a crítica ao SNS. A ideologia tem pouco impacto no SNS. No entanto, em Espanha, Grã-Bretanha e Holanda, os críticos tendem a estar mais associados à direita política, enquanto em Itália, os críticos são tendencialmente  identificados com a esquerda.

Se um sistema universal de saúde se pode sistematizar pelo acesso a cuidados de saúde e a uma proteção financeira face aos custos de tratamento, o nosso sistema, apesar de ser universal é desigual no acesso à prestação de cuidados. Note-se que uma injustiça é tanto maior quando o (a) viés recai para o lado mais fraco, (b) de forma regular ou sem justificação razoavel e (c) com uma magnitude significativa. Usando esta definição as correlações apresentadas não são nada democráticas, já que revelam um desvio regular junto dos que mais precisam.

Creio que a melhor forma de corrigirmos estas debilidades é alinharmos os incentivos do financiamento e dos prestadores. Ou seja, temos de garantir que a produção vai atras do doente – quem mais se produz, mais ganhará. A ideia central aqui é garantir que a produção de serviços de saúde esteja direcionada para atender às necessidades dos pacientes, e que os prestadores de serviços sejam recompensados com base na qualidade e na quantidade de serviços prestados.

Haverá, claro, um excesso de produção clínica, mas na fase em que o país atravessa de tempos de espera elevados e de uma suave eugenia passiva sobre quem mais precisa, prefiro o eventual excesso da sobreprodução à abdicação de cuidados. Esta é uma escolha democrática e cujo debate se impõe.

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