SNS e o respirar da democracia

09/15/2023
por Catarina Martins Deputada à Assembleia da República pelo Bloco de Esquerda

Todas as pessoas, de todas as idades e condições, contam com o SNS. Recorrer ao SNS é tão natural como respirar. Mesmo quem pensa que o SNS é algo distante já terá usufruído do plano nacional de vacinação, de rastreios ao longo da vida, do acesso gratuito a contraceção, de tratamento numa qualquer emergência.

O SNS nasceu com a democracia e Portugal fez-se democracia com o SNS. O acesso à saúde que a criação do SNS permitiu foi um gigantesco passo civilizacional, que se sente na primeira respiração de cada bebé que nasce. Passamos de um dos piores registos na Europa para um lugar de topo na saúde materno-infantil. Nascer e dar à luz passou a ser seguro e este foi apenas um dos extraordinários ganhos do investimento coletivo no SNS.

Ao longo dos anos, o SNS evoluiu com o país e com a ciência. Aumentou em capacidade e diferenciação, garantiu confiança no futuro: “Se eu precisar o SNS lá está”. Esta segurança na vulnerabilidade é um dos projetos coletivos mais bem-sucedidos da nossa democracia. Em Portugal quem é confrontado com um problema grave de saúde reconhece a importância do SNS e a extraordinária dedicação dos seus profissionais à população. Quando mais precisamos, o SNS é o oxigénio que literalmente nos devolve a vida e sabemos disso.

Temos de reconhecer, no entanto, que nos últimos anos o SNS deixou de acompanhar a evolução do país. O sintoma mais claro deste afastamento é a impreparação para responder a uma população envelhecida, pobre e, por isso mesmo, com crescentes problemas de saúde. Envelhecer é ficar condenado às esperas infindáveis, num sistema confuso, incapaz de comunicar e sem portas de entrada que funcionem. Uma experiência aviltante para quem está vulnerável e para quem acompanha pais ou avós neste percurso. Essa experiência, no avesso da confiança que cimenta a democracia, é aterradora. Quando o SNS nos falha, falta-nos o ar.

Dir-se-ia que bastava hoje ter o mesmo rasgo dos anos 70 do século passado. Investir numa organização reforçada para responder à população envelhecida, como antes se investiu para responder a uma população muito jovem. E, com isso, reinventar o SNS e renovar o compromisso democrático. Mas este rasgo exige, ele próprio, a coragem de uma rutura democrática.

O preconceito liberal que se infiltrou no Estado, condiciona os modos de gestão e financiamento do SNS e relegou para segundo plano o mais importante: os utentes. Com métricas por ato praticado e compartimentação da atividade, seja nas instituições do SNS seja nos “convencionados” privados, os utentes saltam entre cuidados primários, meios complementares de diagnóstico e cuidados hospitalares, cada qual registando e cobrando os seus atos e sem nunca se perguntar se o utente percebe o percurso a que está obrigado, quantos dias perde nesses labirintos, por quantas mãos diferentes passará, a quem recorrerá quando estiver perdido ou aflito.

Neste caminho, abandonou-se também o horizonte de carreira e salário dos trabalhadores e destruíram-se as equipas. Trabalham lado a lado contratos em funções públicas e contratos individuais de trabalho, trabalhadores do Estado e tarefeiros de empresas de prestadores de serviço ou a quem o serviço foi concessionado. Em cada percurso, o utente salta entre o serviço público e uma pluralidade de entidades privadas (laboratório, fisioterapia, hospital privado do cheque cirurgia) que dificilmente comunicam entre si.

De tanto procurar a eficiência micro, criou-se um pesadelo de organização. De tanto querer reduzir custos estruturais, criou-se uma monstruosa despesa em contratualizações. E o sentimento crescente de abandono em boa parte da população. Este é o momento de voltar ao início. Não o início do SNS, mas a razão inicial da sua criação: o acesso à saúde de toda a população. O imperativo democrático.

Três escolhas para este tempo: dedicação, confiança, cuidado. Remunerar condignamente quem se dedica ao SNS. Escolher a credibilidade de concursos e eleições para cargos de direção. Organizar com os utentes no centro. O SNS é a democracia a respirar e só existe com quem o legitima todos os dias: profissionais e utentes.

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