Em abril de 1974, a coragem do povo português irrompeu por entre a fortaleza de uma ditadura política que durante anos nos fechou do mundo, asfixiando um espírito de ambição, de ousadia e de esperança que sempre marcou – e guiou – a nossa história coletiva.
O país desagrilhoado que assumimos no dia seguinte colocou nos nossos ombros um tremendo e, olhando para trás, provavelmente subestimado, desafio: o de, não só construir, mas cumprir os pilares de liberdade, solidariedade, respeito, dignidade, justiça e pluralismo em que, pela mão e convicção de muitos, alicerçámos o Portugal democrático.
Foi esse mesmo ímpeto que, anos mais tarde, desbravou caminho para que se desse forma, corpo e vida a uma das convicções e compromissos mais nobres da sociedade contemporânea: o reconhecimento e garantia do direito à proteção da Saúde de todos e de cada um, desde logo por via de um serviço público de matriz universal, capaz de assumir perante os portugueses o compromisso de que ninguém é esquecido ou fica para trás.
Neste 15 de setembro, em que por feliz coincidência assinalamos em simultâneo a Democracia e o SNS, somos convocados a olhar para trás e refletir perante a caminhada que nos trouxe até aqui. Mas, inevitavelmente, a olhar também perante o horizonte de um futuro complexo e que, por entre as suas múltiplas incertezas, nos dá já hoje sinais claros do muito que há a fazer para projetar às gerações dos nossos filhos e netos um país socialmente coeso e economicamente dinâmico, que não os iniba de concretizar os seus sonhos e livres ambições. Um Portugal com que nos comprometemos há quase meio século, mas que está ainda por cumprir.
A democracia permite-nos (e, por isso, exige-nos) hoje mais escrutínio perante as muitas e importantes opções – e decisões – que o país precisa de assumir para não sucumbir a esse futuro alarmante que os portugueses, infelizmente, sentem já hoje no seu dia-a-dia. A esse escrutínio e à urgência da ação, é preciso responder com espírito disruptivo e, acima de tudo, pragmatismo. Tenhamos a coragem de romper, horizonte fora, com pressupostos e modelos que, ano após ano, ciclo após ciclo, liderança após liderança, se têm revelado incapazes de estar à altura das legítimas expectativas do Portugal livre, reformista e humanista.
Na Saúde, como na democracia, é também urgente que assumamos uma nova forma de encarar, planear e gerir o estado de saúde da população e a resposta que damos às suas necessidades. A filosofia que temos perpetuado, década após década, de acantonar a vasta maioria do sistema, dos profissionais e dos recursos de saúde numa espécie de mecanismo reativo à doença está errado. E são hoje bastantes os sinais e a evidência de que, pior do que estar errado, acabará por se tornar insustentável. No final, se nada for feito, quem não tem recursos próprio não terá acesso aos cuidados de saúde de que inevitavelmente virá a precisar ao longo da vida.
É imperativo mudar de rumo.
Perante os desafios de hoje – a pressão demográfica, a crescente carga de doença crónica, as desigualdades no acesso a cuidados e aos exponenciais avanços tecnológicos, as expectativas e anseios dos próprios profissionais de saúde – entendo que esta nova reforma que se exige na governação da saúde e do SNS em Portugal passa por desconstruir dois pressupostos fundamentais:
Desde logo, a montante, a noção de que o compromisso do Estado para com a saúde e o bem-estar do cidadão tem de ir muito para lá do reflexo de atenuar e gerir a sua doença; implica evitá-la a todo o custo, mas também garantir que há vida com qualidade durante e depois dela.
A jusante, na linha da frente onde milhares de profissionais de saúde em cada região, concelho e freguesia asseguram a cada dia com exemplar entrega e resiliência, deve-se atuar com reconhecimento do mérito. Para tal, é fundamental medir, avaliar e premiar as ações dos profissionais que efetivamente contribuam para mensuráveis ganhos em saúde à escala individual e também ao nível do estado global de qualidade de vida e bem-estar que proporciona ao cidadão e às comunidades onde se insere. Urge abandonar de ver a cega contabilidade do volume de consultas, exames, cirurgias e prescrições que se exige às equipas, aos centros de saúde e aos hospitais que hoje predomina os modelos de gestão política, administrativa e financeira do SNS.
No final do dia, a política de saúde em Portugal deve ser mobilizada tão só e apenas pelo desejo de aproximar cada cidadão, em qualquer momento do seu ciclo de vida, do seu melhor estado de saúde possível.
Entre muitas outras conquistas, a democracia permitiu-nos acreditar que seria possível viver numa sociedade assim. Que mantenhamos a ambição e a coragem de a cumprir.
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