Diretor-geral da Saúde entre 2005 e 2017, em entrevista à Agência Lusa Francisco George acha estranho que não se tivesse admitido que podiam surgir novas doenças e não houvesse uma preparação para elas, à luz de outros coronavirus neste século (Sars logo no início do século e depois, em 2012, o Mers).
Mas Francisco George vai mais atrás, recua a 1980, lembra o aparecimento da sida, também uma doença que até então não existia.
“O que é estranho neste processo é que muitos governos, muitos governantes, muitos médicos, muitos cidadãos, não tenham compreendido o fenómeno de 1980 com o aparecimento de um novo vírus, de uma nova doença que até então não tinha existido”, diz.
Um ano antes, em 1979, ninguém admitia que novas doenças pudessem surgir, as faculdades não ensinavam aos seus estudantes cenários desta natureza, de novas epidemias. As lições, afirma, eram baseadas sobretudo no controle dos problemas, acabar com doenças como se tinha feito com a varíola.
“Era o tempo do controle do paludismo. Era o tempo do controle do sarampo, que também foi eliminado, do controlo e eliminação da poliomielite. Eram esses os temas de estudo nas academias, e nunca o cenário de poder surgir uma questão nova”.
Mas surgiu. E nessa altura, em 1980, as autoridades académicas e os governos foram alertados para a necessidade de reforçar as unidades de saúde pública. Mas Francisco George é perentório: em Portugal, apesar dos “sucessivos alertas”, até internacionais, as unidades de saúde pública “nunca foram motivo de atenção”.
“Muitas vezes os programas eleitorais falavam do reforço da saúde pública, mas depois na prática não havia reforço”, diz, considerando que um dia é preciso olhar para trás “com duas lupas”, uma política e outra científica, e ver o que aconteceu desde 1980.
É preciso ver, considera, as promessas e os porquês do não cumprimento dessas promessas em termos de saúde pública, como é preciso um olhar de base científica para perceber os erros que terão sido cometidos.
“Um deles podemos já adiantar, a saúde pública e as suas infraestruturas, as suas estruturas, foram surpreendidas com, digamos, a força deste furacão” que foi a covid-19.
Por isso, defende, é preciso dar atenção aos equipamentos de saúde pública, ao seu pessoal, e reforçar a defesa do país até em termos de segurança nacional, através do reforço das unidades de saúde pública.
“Sempre foi uma luta, que considero que a nível pessoal terei feito, mas provavelmente não terei feito o melhor, porque se tivesse feito melhor o resultado teria sido outro”, reconhece.
Em Portugal, resume, faltou atenção à saúde pública, e ainda que tivessem existido anúncios “não houve desenvolvimento daquilo que tinha sido anunciado para reformar a saúde pública a nível nacional”.
Em tom professoral, Francisco George explica que o sistema português de saúde foi concebido em três grandes componentes, a componente centros de saúde, a componente médicos de família e a componente hospitalar.
“E a verdade é que todos nós percebemos que a pandemia teve no início dificuldades, sobretudo porque nenhuma destas três componentes estava preparada para este confronto”, prossegue.
No mesmo tom, cruzando os dedos, na sede da Cruz Vermelha Portuguesa, entidade a que preside atualmente, Francisco George recua para outras pandemias antes da covid-19, explica conceitos e compara a atual pandemia com outras.
Pandemia é uma epidemia que se propaga simultaneamente em mais de um continente, e assim foi logo no primeiro trimestre de 2020, afirma, lembrando, no entanto, que os coronavirus são conhecidos dos médicos e cientistas há mais de 50 anos, como são conhecidas as doenças que provocam também em animais.
E recorda a Sars-Cov, um surto de síndrome respiratória aguda grave identificada em 2003, com origem no sudoeste asiático e de natureza zoonótica (vinda da civeta, uma espécie de gato), ou uma década depois outro surto respiratório grave, chamado de Mers-Cov, com mais expressão no Médio Oriente.
Mas porquê mais um coronavírus na China? Francisco George, licenciado pela Faculdade de Medicina de Lisboa, especialista em saúde pública, antigo delegado de saúde, atual presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, foi funcionário da Organização Mundial de Saúde (OMS) de 1980 a 1991 e nessa condição trabalhou na China, recorda.
Explica que a China é um país com excesso de população, onde em todo o lugar cada um se confronta com multidões, pelo que é fácil a transmissão de doenças. “Só quem não conhece a China não percebe a facilidade de transmissão na comunidade”, agravada pelo facto de animais silvestres serem fonte de alimentação.
Um coronavírus é assim chamado porque as espiculas (idênticas a espigas) que se encontram na superfície do vírus, em termos de fotografia eletrónica, fazem lembrar uma coroa. É também assim o SARS-CoV-2, que provoca a doença covid-19, só que este, ao contrário de outros, surgiu em ondas sucessivas, surpreendendo todos.
“Estamos perante uma nova doença que inesperadamente atinge todo o globo, e é bom que se compreenda que a epidemiologia não é como a meteorologia. Na meteorologia os meteorologistas podem antecipar um furacão e classificá-lo, e anunciar com antecedência aquilo que irá acontecer. Mas os epidemiologistas não têm meios, não têm ferramentas, não têm conhecimentos para antever, para antecipar, como acontece na meteorologia, aquilo que irá acontecer”.
Por isso Francisco George confessa-se incapaz de dizer o que vai acontecer quanto ao Sars-Cov-2, identificado na China no final de 2019. Admite-se, diz, que este coronavírus possa ser controlado, quando houver uma vacinação eficaz em todo o planeta.
Mas nega que se saiba ainda pouco sobre o novo coronavírus, diz que pelo contrário há muitas certezas, que a doença foi identificada rapidamente. Devemos espantar-nos, assegura, com a rapidez com que o vírus foi identificado, sequenciado, e feita uma vacina. “Isto é um sucesso”.
E recusa também considerar o Sars-Cov-2 um vírus “bom”, no sentido de que apesar de muito transmissível não ser excessivamente letal. Não se pode dizer tal, frisa, até pelo respeito pelos milhares de pessoas, em Portugal e no mundo, que morreram.
Há vírus que provocam doenças mais graves, mas a letalidade, que é a probabilidade de uma doença provocar a morte, apesar de ser baixa comparada com outros, não pode ser ignorada, diz.
Mas Francisco George recusa considerá-lo um vírus “bom e diz que não sabe como ele vai evoluir. Mas tem uma certeza, uma grande certeza. “Vamos ter mais epidemias, vamos ter mais pandemias, isto sabemos desde sempre”.
LUSA/HN
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