Criança vítima de violência doméstica nunca foi protegida – Relatório

25 de Novembro 2022

Uma criança vítima de violência doméstica viu a mãe ser morta e o pai suicidar-se mas nunca foi considerada como vítima nem protegida e não foi avaliado o risco de sofrer novos maus tratos, denuncia um relatório divulgado hoje.

O relatório é da autoria da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em Violência Doméstica (EARHVD) e diz respeito ao caso de uma criança de nove anos que presenciou vários episódios de agressões à mãe por parte do pai e que culminou com o homicídio da mãe, tentativa de homicídio da criança e posterior suicídio do pai.

O caso aconteceu em 2020 e da análise feita pela EARHVD há falhas em vários pontos do processo, desde a análise de risco feita pela Guarda Nacional Republicana (GNR), aos cuidados de saúde, mas também no que diz respeito ao acompanhamento feito pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens competente.

A EARHVD diz mesmo que relativamente a esta criança houve “desconsideração no decurso do processo criminal”, apontando que, apesar de estar com a mãe num momento em que a mulher foi violentamente agredida pelo marido e de, por isso, ter ficado “assustada e transtornada”, a criança não foi considerada vítima de violência doméstica.

“Esta criança, com 9 anos de idade, não foi identificada como vítima do crime de violência doméstica, não foi avaliado o risco que corria de poder vir a sofrer novos maus tratos, não foi tomada qualquer medida para a proteger no decurso do processo criminal”, lê-se no relatório.

Relativamente à atuação da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), a equipa refere que todos os contactos foram feitos na presença de mãe, pai e filho, “ignorando-se o contexto de violência doméstica que determinara a necessidade de intervenção protetiva”, nunca tendo sido nenhum deles ouvido individualmente, nomeadamente a criança.

Na análise da EARHVD, esta atuação foi “claramente desadequada”, criou maior fragilidade para a mãe e voltou a expor a criança ao conflito entre os pais.

“A Comissão de Proteção não conseguiu identificar e caracterizar a situação grave de perigo em que esta criança se encontrava, não percecionou a agudização do conflito familiar em que estava envolvida, não a tratou realmente como um autónomo sujeito de direitos e não se mostrou habilitada a definir uma linha de rumo capaz de garantir a sua proteção e promoção do desenvolvimento”, refere a equipa.

Acrescenta que até ao dia do assassinato da mãe, não houve qualquer contacto entre a CPCJ e o Ministério Público, nem sequer para a necessidade de regulação dos poderes parentais, o que leva a EARHVD a afirmar que “a ação protetiva foi insuficiente e inadequada para alcançar o objetivo de promover os direitos da criança e por termo à situação que estava a afetar a sua saúde, educação e desenvolvimento”.

No que diz respeito à atuação da GNR e respetiva elaboração da avaliação de risco – foram feitas quatro, três das quais de risco baixo – a EARHVD refere que “foi cumprido um procedimento burocrático, mas não efetuada uma avaliação de risco com o comprometimento na procura ativa de informação”.

“Na avaliação do risco não foi tomada em consideração toda a informação existente em cada momento, mesmo aquela que já constava das avaliações de risco anteriores, os fatores assinalados foram-se alterando de acordo com as oscilações na estabilidade e na perceção do risco pela vítima, única fonte de informação”, lê-se no relatório, acrescentando que nas últimas duas avaliações devia-se ter concluído pelo nível elevado de risco.

Relativamente à assistência às vítimas, “apesar do apelo para uma vigilância muito próxima da vítima pela GNR, de afirmar que havia um perigo efetivo de que ele [o agressor] pudesse continuar a ofender física e psicologicamente”, o Ministério Público “paradoxalmente, manteve sempre a posição, não suportada nos elementos constantes do inquérito, de que era suficiente o termo de identidade e residência”.

No que diz respeito à área da saúde, apesar de haver registo de necessidade de assistência por lesões em 2018, não foi feita qualquer comunicação à Equipa para a Prevenção da Violência em Adultos (EPVA), resposta estruturada e formalizada nos serviços de saúde.

“A ação desenvolvida limitou-se ao tratamento sintomático, ao tratamento de lesões físicas e à medicação para a registada ‘perturbação depressiva’, apesar de a informação existente, pelo menos desde 12-09-2019, indiciar a também registada ‘situação complicada’ nas relações” entre vítima e agressor.

O relatório acrescenta ainda que a equipa de saúde familiar, apesar de ter feito consultas individuais a todos os membros da família, “não efetuou uma avaliação global e das relações existentes”, nem encaminhou a criança para o Núcleo de Apoio às Crianças e Jovens em Risco ou a mãe para a EPVA do centro de saúde.

LUSA/HN

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